Por água abaixo: desperdício é de 38,4% na Bahia; 710 piscinas olímpicas por dia

Especialistas criticam nível de perdas na distribuição e sugerem investimentos

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  • Da Redação

Publicado em 1 de julho de 2018 às 05:02

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Evandro Veiga/Arquivo CORREIO

Não tem uma semana em que não aconteça. Pelo menos uma vez a cada sete dias, os moradores de Livramento de Nossa Senhora, no Sudoeste do estado, ficam sem água. É sempre sem aviso: de repente, abrem a torneira para descobrir que nada vai cair de lá. As duas rádios da cidade recebem ligações de ouvintes reclamando do problema praticamente todos os dias. 

“Quando construí minha casa, há 12 anos, já foi pensando nesse problema. Coloquei uma caixa d’água, porque é muito comentado na cidade. Quem não tem (caixa), sofre”, conta uma moradora que não quis se identificar. No início do mês, uma região chegou a ficar mais de 20 dias sem água.

O que os moradores não sabem é que a cidade até poderia ter água – o problema é que a água não chega lá. Livramento de Nossa Senhora é uma das cidades que, segundo a Embasa, fazem parte dos sistemas com maiores índices de perdas reais (ou seja, quando há vazamentos nas tubulações e extravasamento de reservatórios). A situação é ainda pior no distrito de Itanagé, que concentra 4,4 mil, dos 42,6 mil habitantes do município. 

Em todo o estado, a perda de água é considerada elevada. Em 2016, a Bahia desperdiçou – ou, no sentido técnico, perdeu – 648 milhões de metros cúbicos de água, somente durante a fase de distribuição, de acordo com o Sistema Nacional sobre Informações de Saneamento (Snis), do Ministério das Cidades. Isso representa 38,4% do total de água disponível para o estado e equivaleria à quantidade assustadora de 710 piscinas olímpicas por dia. O ‘aceitável’, para o próprio Snis, seria um índice de, no máximo, 20% de perda.“Se é uma água que efetivamente não chega à torneira das pessoas, está afetando o abastecimento. Se a gente conseguisse reduzir isso para 18%, 19%, conseguiria melhorar bastante o suprimento de água e um dos problemas que acontece no abastecimento, que é a intermitência. Tem horas que tem água, tem horas que não tem”, diz o professor Luiz Roberto Moraes, do Departamento de Engenharia Ambiental da Universidade Federal da Bahia (Ufba) e pesquisador da área de saneamento. Os dados do Snis correspondem a 395 das 417 cidades baianas – dessas, 366 atendidas pela Embasa – e são fornecidos anualmente ao Ministério das Cidades por prestadores de serviços (como a própria Embasa) e por prefeituras responsáveis pela gestão do fornecimento de água e saneamento. Atualmente, as estatísticas de 2017 estão sendo coletadas.

Com percentual de perdas maior do que o próprio Brasil (de 38%), a Bahia é o 15º estado que mais perde água no ranking nacional. A lista é liderada pelo Amapá, que chega a 70,5%. A melhor situação é a do Tocantins, com 30,1%. Em todo o Brasil, essas perdas significaram um prejuízo de R$ 10 bilhões por ano.  Fonte: Trata Brasil e GO Associados O diretor de Águas do Instituto Estadual do Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Inema), Eduardo Topázio, também diz que as perdas poderiam evitar o desabastecimento em alguns locais.“Se você tem uma população de três milhões de habitantes, imagine se você reduz (a perda). Esses 20% dariam para atender muito mais gente. Essa água poderia estar chegando no estuário e melhorando a qualidade do rio também”, diz Topázio. O que significam as perdas De fato, é impossível existir perda ‘zero’ de água. A Embasa diz isso e os especialistas ouvidos pela reportagem também – países europeus que estão na melhor situação, porém, ficam próximos disso, com números que não chegam aos dois dígitos. No entanto, através da assessoria, a Embasa explica que as perdas são a diferença entre os volumes contabilizados na entrada e na saída dos sistemas de água. 

“Essas perdas são inerentes aos sistemas de abastecimento, ou seja, por melhor que seja a condição da infraestrutura e por mais eficiente que sejam a operação e a manutenção, não existe perda zero”, reforçam, em nota. 

E isso acontece justamente porque há dois tipos de perda: as chamadas reais – os problemas na tubulação e nos reservatórios – e as aparentes, que são devido às fraudes cometidas pelas próprias pessoas, como ligações clandestinas. 

Há duas formas de saber onde estão as piores situações no estado: o Snis classifica as perdas por município, enquanto a Embasa separa por sistemas de abastecimento. “Um sistema de abastecimento é um conjunto de instalações e equipamentos para captação da água em um ou mais mananciais, adução, tratamento e distribuição aos imóveis de uma determinada área. Existem municípios que são atendidos por mais de um sistema, e sistemas que atendem mais de um município”, explica a empresa. 

O conceito de ‘perda’ de água, inclusive, é diferente do conceito de desperdício, como explica o professor. “Perder água é quando tem uma tubulação com vazamento, quando tem um reservatório extravasando. E o desperdício é quando a pessoa joga água fora. É quando você está lá escovando os dentes e deixa a água jorrando”, exemplifica o professor Luiz Moraes, da Ufba. Rompimento de tubulação provocou vazamento no Dique do Tororó, em Salvador, em abril (Foto: Evandro Veiga/Arquivo CORREIO) Para o professor, a realidade nos municípios que sofrem com as perdas de água mostra uma coisa preocupante: não existe preocupação em fazer com que essa perda seja reduzida. Há esforços para ampliar o sistema de abastecimento de água e produzir mais água, mas pouco se cuida de como essa água vai chegar às casas.

“Dentro dessa lógica, tem todo o interesse do capital, de empresas instaladas para produzir equipamentos e materiais para saneamento, de empreiteiras para fazer obra. E não tomam vergonha na cara para reduzir as perdas no sistema”, critica. 

Ele cita locais que chegam a perder 70% da água e classifica como ‘absurdo’. “Se a gente vai para a Europa, para o Japão, a gente vê perdas que variam em um dígito, ou 12%, 15%, estourando. E se a gente compara ano a ano, essa perda (alta) é mantida. Ou seja, as políticas públicas dos prestadores de serviço não estão sendo voltadas para a redução da perda de água”, denuncia. 

Onde mais se perde Esse número ‘absurdo’ poderia ser diretamente transposto à realidade de Anguera, no Centro Norte baiano. Na análise por município, feita pelo Snis, essa é a cidade baiana que tem o maior índice de perdas na distribuição de água – o percentual chega a 77,8%. Atendida pela Embasa, dos 980,3 mil metros cúbicos de água já prontos para o consumo, apenas 216,15 mil chegaram às 2.303 ligações de água.

Procurada pelo CORREIO, a gerência local da Embasa em Anguera declarou que os dados de 2016 “estão errados”. Afirmaram, ainda, que “os índices de perdas são bem mais baixos”, porém não deu detalhes dos números considerados reais, alegando falta de autorização para tal.

Números errados ou não, o que se sabe é que há reflexos na rotina dos moradores. A secretária Micheli de Araújo, 27 anos, mal chegou a Anguera e se deparou com os problemas no abastecimento de água. 

“Estou há menos de um mês aqui e quando cheguei muita gente me falou para me acostumar com a falta de água”, admitiu a jovem. Nascida e criada no povoado de Cabeça do Boi, em Serra Preta, cidade vizinha, Micheli é acostumada com poços artesianos. No entanto, não há falta de água. “Ainda não senti a falta de água aqui na cidade, mas me disseram que, quando falta, fica até 15 dias sem cair”, comentou.

A encarregada de sessão de um supermercado local Luana Silva, 20, diz que a falta de água por lá acontece 'direto'.“Quando vem, é desigual. Cai em umas casas e, em outras, não. Aí, reclamamos e eles dizem que é por causa de cano quebrado”, revela.Em Anguera, somente 25,5% das residências têm sistema de esgoto sanitário adequado, de acordo com o IBGE. 

Maiores prejuízos Para a Embasa, por outro lado, os maiores prejuízos na distribuição de água ocorrem no sistema de abastecimento de Biribeira, que fica em Dias D’Ávila, na Região Metropolitana de Salvador (RMS). Só nesse sistema, o índice de perdas chega a 44%.

Em Biribeira, que fica entre Dias D’Ávila e Camaçari, ter água encanada em casa é um privilégio de poucos. É comum que não caia nenhuma gotinha por até 15 dias. Quando o fluxo volta, é fraco. Não dá para subir aos reservatórios e, por vezes, os moradores contam que volta com sujeira e resíduos. 

“E ocorrem cobranças abusivas também. Mês passado, minha mãe teve de pagar R$ 250 de conta, sendo que o valor normal dela fica entre R$ 70 e R$ 80. Reclamamos, mas não adiantou. Falaram que, se não fosse pago, iam cortar”, conta a secretária de supermercado Michele Alves, 27.

É em Livramento de Nossa Senhora que está o segundo sistema de abastecimento que mais tem perdas reais na Bahia, segundo a Embasa. O sistema que abastece o povoado de Itanagé chega a ter perdas de 39% - pouco mais do que a média estadual. 

“Tem duas semanas que está normal o abastecimento, mas quando falta fica por dias sem vir. É uma água que não é de qualidade, tem sujeiras”, conta o motorista do único ônibus que faz a linha entre Itanagé e Livramento, o rodoviário Gilson Oliveira, 40. Ele se acostumou a usar a água que chega para tomar banho e lavar pratos. Para beber, prefere pegar água de poço no povoado da Varzinha, vizinho a Itanagé. 

Moradora do local, uma estudante que se apresentou apenas como Talita disse que a água aparenta ser de boa qualidade. O problema é que muita gente diz mesmo que não é apropriada para consumo. “Não sei se é verídico. Nós consumimos talvez até por falta de opção”, admite. A Embasa de Livramento não retornou os contatos da reportagem.

O sistema integrado de abastecimento de Salvador, que atende a capital, Lauro de Freitas e Simões Filho, tem índice de perdas de 31%, segundo a Embasa. No Snis, o índice especificamente sobre a capital aponta para 53%, mas não há dados sobre volume disponibilizado e consumido.Maiores índices de perda por ligação, na área de atuação da Embasa:Sistema de abastecimento Percentual de perdas reais em relação ao total de água distribuída SIAA de Itanagé 39% SAA de Biribeira 44% SIAA de Jordão 36% SIAA de Salvador 31% SIAA de Machadinho 35%  Menores índices de perda por ligação, na área de atuação da Embasa:Sistema de abastecimento Percentual de perdas reais em relação ao total de água distribuída SAA de São José do Jacuípe 0,87% SAA de Tapiranga 0,81% SAA de Maniaçu 0,63% SAA de Ibiaporã 1,34% SAA de Enseada 0,72% SAA de São Francisco do Paraguaçu 0,27% As boas práticas  Segundo a estatal, o sistema de abastecimento que menos tem perdas reais de água na Bahia é o do povoado de São Francisco do Paraguaçu, pertencente à cidade de Cachoeira, no Recôncavo, com índice de perdas de 0,27%.

Outros sistemas citados como os que têm menores índices são os de São José do Jacuípe, Tapiranga, Maniaçu, Ibiaporã e Enseada.

A Embasa informou que atua “em diversas frentes contra as perdas de água, tanto reais como aparentes”. E isso incluiria desde setorização dos sistemas, instalação de válvulas redutoras de pressão, instalação e substituição de hidrômetros e redes de ramais, até pesquisas para detecção de vazamentos não visíveis. Eles citam, também, intervenções preventivas, para substituição de trechos das redes, em diversos pontos da cidade. 

Porém, segundo o professor Luiz Roberto Moraes, esses investimentos ainda são pífios – se comparados ao que é investido em obras de ampliação. “O discurso que a gente ouve é de que é difícil de atingir (o percentual de 20%). Minha visão é diferente: é de que não é prioridade, porque a lógica é do capital. É de propiciar lucro para as empresas que constroem, que fazem o sistema aumentar. É fazer grandes barragens, grandes adutoras e não tomar vergonha na cara”, diz o professor. Questionada pelo CORREIO, a Embasa informou que entre 2015 e 2017, investiu R$ 628 milhões em diversas ações de abastecimento de água, como implantação, ampliação e melhoria de sistemas e construções de barragens e adutoras. "Além disso, a empresa atua na gestão, operação e manutenção dos 431 sistemas que atendem 366 dos 417 municípios baianos, realizando despesas com substituição de redes distribuidoras e ramais, substituição e recuperação de hidrômetros, combate às fraudes na rede, investimentos em novas tecnologias para equalizar a pressão e distribuição de água, dentre outras ações", comenta a empresa, em nota.

Ainda de acordo com a Embasa, embora estas ações não estejam, atualmente, contempladas "em uma categoria de custos específica para combate a perdas, grande parte delas contribui direta ou indiretamente para o controle e redução de perdas nos sistemas geridos pela empresa". A empresa argumenta ainda que, na realidade, "o controle de perdas é inerente aos processos de gestão, operação dos sistemas de abastecimentos de água". 

Por fim, também diz que trabalha continuamente para reduzir as perdas de água, tanto reais como comerciais, e que montou um grupo de trabalho especial para tratar do assunto.

O diretor de Águas do Instituto Estadual do Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Inema), Eduardo Topázio, por sua vez, destaca que muito mais investimentos teriam que ser feitos, porque o sistema é antigo. No entanto, o estado ainda tem déficit em algumas áreas de saneamento. "Saneamento é saúde pública e, muitas vezes, o recurso acaba sendo restringido. Na água, temos cobertura para quase 100% da população, mas, em esgotamento sanitário se estima em torno de 80%, mas é 80% de capacidade instalada. Eu faço uma avaliação que deve ser de 60% na Região Metropolitana de Salvador", comenta ele."Muitas cidades do Brasil ainda não têm e isso leva a um impacto de perda de água indireta, porque, geralmente, o esgoto contamina os rios e os aquíferos, que são quem abastecem as cidades", completa Topázio.

Nas cidades citadas pela reportagem, de fato, a cobertura do esgotamento sanitário não atinge toda a população. Em Anguera, o índice é de 25,5%, enquanto em Livramento de Nossa Senhora e Dias D’Ávila, os percentuais são de 30,2% e 59,6%.

Doutor em Geografia pela Ufba, com pesquisa sobre recursos hídricos do Cerrado, o professor Marco Antonio Tomasoli, do Instituto de Geociências, também avalia que o desperdício na distribuição ocorre por falta de investimentos mais modernos.“Muitas tubulações são velhas, sobretudo em sistemas de distribuição mais afastadas dos grandes centros, as adutoras também ficam sem manutenção. E o desperdício que ocorre por conta disso é agravado pelas linhas clandestinas de água que são feitas, sobretudo em áreas rurais”, declarou.O pesquisador destaca também que é preciso os gestores de águas terem mais atenção com relação ao consumo de água dos grandes empreendimentos agrícolas, “onde ocorre também muito desperdício, em equipamentos obsoletos”. “Não adianta muito também os gestores fazerem a parte deles, evitando que menos água seja perdida durante a distribuição, se quando passa para o consumidor ocorre o desperdício do mesmo jeito ou ainda pior. Em qualquer forma de desperdício, a água tratada vai embora sem que tenha sido feito uso humano”, acrescentou.