'Por trás do número, existe muita dor', diz psicóloga sobre atender famílias de vítimas da covid

No Dia da Mulher, profissionais que atuam em hospital de Salvador relatam os desafios de lutar por igualdade em meio à pandemia

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  • Hilza Cordeiro

Publicado em 8 de março de 2021 às 05:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Nara Gentil/CORREIO

A crise sanitária mundial destacou o protagonismo das mulheres. Maioria na linha de frente do combate à covid-19, elas são a principal força de trabalho da saúde em todo o mundo. Diante das condições extenuantes do cenário atual, precisam ser lembradas como verdadeiras heroínas, com nomes marcados na guerra biológica que entra como um dos mais duros capítulos da história da humanidade. Elas representam mais de 70% dos profissionais da área de saúde e serviços sociais, segundo o Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA). Esta liderança, no entanto, vem acompanhada ainda de preconceitos e fardos desproporcionais que, culturalmente, as mulheres carregam muitas vezes sozinhas. 

Elas são enfermeiras, técnicas e auxiliares, fisioterapeutas, farmacêuticas, psicólogas, assistentes sociais, nutricionistas, biomédicas, médicas, motoristas de ambulância, profissionais da limpeza, gestoras e desempenham uma série de outras funções.

É preciso homenageá-las sem esquecer que, neste cenário pandêmico, várias mulheres estão enfrentando dramas como o aumento da violência doméstica, maior carga de tarefas não-remuneradas — sobretudo de cuidado com crianças e parentes doentes ou idosos — além de desemprego e pobreza. Nesta segunda-feira, 8 de março, o CORREIO traz depoimentos de três mulheres que estão na batalha contra o vírus, em diferentes profissões, para homenageá-las e lembrar a luta que é ser mulher todos os dias no caminho em direção à igualdade de gênero. A seguir, conheça a história da psicóloga Jaqueline Amorim, que tem 32 anos, é noiva, sem filhos, e trabalha no Hospital Espanhol

Espaço para o imprevisto 

O dia a dia de Jaqueline: Embora tenha uma rotina pré-estabelecida, a psicóloga nunca sabe o que pode ocorrer, não dá para prever quando um paciente, uma família ou até mesmo um colega vai precisar de acolhimento psicológico. Cada dia é único. Ao assumir o plantão pela manhã, Jaqueline tem que ajudar o médico ou médica que acabou de noticiar um falecimento aos parentes. Ela acompanha o familiar no difícil reconhecimento do óbito. Está ali para as palavras de conforto e até para segurar quando a pessoa cai por não suportar ver-se diante do corpo. Não é fácil absorver tanta dor. A psicóloga tem as suas próprias dores, que incluem aquela bastante específica de, muitas vezes, ser desacreditada por ser uma mulher negra. A resposta dela a quem a desmerece é dada com trabalho e elegância.

Confira o depoimento de Jaqueline:“A minha rotina é bem intensa e tensa. A gente está vendo uma realidade impactante com o número de famílias devastadas. Temos vários pacientes internados que não fazem ideia de que a sua esposa, filho, pai, mãe morreu e ele ainda está ali vivo. Semana passada a gente acompanhou um caso bem doloroso, impactou o hospital todo porque um paciente de 18 anos faleceu. Um menino. Duas semanas antes, o pai dele já tinha ido reconhecer o corpo da mãe. Na semana seguinte, esse pai foi internado e morreu. Na outra, o menino precisou ser hospitalizado e veio a óbito. A família toda morreu. 

Com mais essa morte, a gente precisou conversar com o avô, de 83 anos, e a avó, de 82. E pela idade deles, eu fiz questão de ligar para entender como eles estavam lidando com a situação e ele disse: ‘Eu não sei te explicar o que está acontecendo, estou meio aéreo. Eu vou precisar reconhecer o corpo do meu neto?’. Ele foi lembrando dessa sequência de um indo reconhecer o corpo do outro, sendo internado em seguida e depois vieram a óbito.

Ele disse: ‘Só tem eu e minha velha e, se eu for reconhecer o corpo dele, eu posso morrer na outra semana e quem vai ficar com a minha velha?’. Falei que eles iriam achar a forma de fazer o reconhecimento sem se expor e ele respondeu. ‘Minha filha, você está tirando uma dor das minhas costas. Acho que agora eu vou conseguir chorar a dor da perda do meu neto’. Eu desliguei o telefone e precisei ficar parada digerindo aquilo que eu nem consigo imaginar, aquela dor da perda de uma família inteira. Por trás do número, existe muita dor.

Todo profissional se reinventa todos os dias, cada paciente é uma demanda. Tá puxado e a gente precisa chegar em casa e dar conta. Eu tenho a vantagem de ter uma família e um noivo que é muito parceiro, não tenho filhos. Mas tenho colegas que têm e ainda precisam dar conta de limpar a casa quando chegam e “cumprir seu papel de esposa”. Meu noivo sabe o que estou passando. Então, quando chego, ele já deixou a casa limpinha e, se eu pedir, ele faz comida para mim.

Amigas me relatam que preferem passar o dia inteiro no hospital do que voltar para casa porque quando chegam está tudo bagunçado, elas estão cansadas e o marido ainda quer que ela dê conta do sexo. Você carrega esse peso o dia todo, um plantão de 12h, vendo pacientes morrendo e vai lá ter cabeça para essas coisas? Todas falam sobre o sexo, que vão tentar uma relação e não aguentam. 

Nada está sendo flores para ninguém. Já tive momentos que eu quis desistir, não pelo trabalho, mas por alguns colegas. O fato de eu ser negra, psicóloga e falante incomoda algumas pessoas. Um dia, eu estava com um paciente que me chamou para cantar para ele uma música de Roberto Carlos. Depois, ele me pediu água. Saí para buscar e, quando voltei, ele tinha dado parada, precisava ser reanimado. Eu saí desesperada para chamar o médico, que estava indo almoçar. Eu tive que emprestar rápido para ele os meus paramentos.

No fim, o médico perguntou: ‘Quem foi mesmo que me emprestou os paramentos para eu poder agradecer?’. Aí uma médica respondeu: ‘Pergunta para a psicóloga negrinha’. Eu não estava na hora, mas soube que o médico me defendeu falando assim para ela: ‘Você está pedindo para eu perguntar à psicóloga negra, altona, que trabalha para caramba? Cuidado para você não passar vergonha’.

Por dentro, todo mundo que viu o momento ficou em êxtase, mas ficaram calados. O médico me chamou na coordenação das UTIs, me agradeceu e disse: ‘Nunca deixe que a palavra ou ação diminua o potencial que você tem, os pacientes precisam de você’. Meus pais abriram mão de ter um melhor conforto na vida para que eu tivesse estudo. Fui aluna do Salesiano e essas pessoas brancas vão aprender a me respeitar do mesmo modo como eu as respeito. Tenho pena de quem pensa que é melhor por ser branco. Sou mulher e negra e querem que eu fique me justificando o tempo inteiro. A minha resposta é sorriso largo e trabalho. Não tem nada nesse mundo que eu não quisesse conquistar que eu não consegui ainda"