Por uma terceira margem

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  • Kátia Borges

Publicado em 11 de abril de 2021 às 05:00

- Atualizado há 10 meses

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Por duas vezes experimentei a estranheza brutal da pandemia. Aquela sensação que alguns descrevem como sendo a de estar numa ficção científica ou preso numa realidade paralela. A percepção, por segundos, da existência de uma fenda no solo. E de que apenas um dos pés segue fincado na borda de um caminho que se encerra no ponto exato em que a terra se rompe e divide o percurso. O outro pé busca, no susto, encontrar um apoio firme que permita oscilar para frente.

O instinto humano de sobrevivência equilibra no vazio o próprio peso, enquanto a cabeça dita os comandos. Haja o que houver, não olhe para baixo. Fixe a atenção no horizonte. A despeito do clima inconstante, siga em cabotagem. Porto a porto como se navegasse, um dia de cada vez. Apenas ignore os riscos que corre, a fenda abissal sob seus pés. Pano rápido e estou na agência bancária do bairro onde moro. É uma manhã qualquer de março, o primeiro horário de atendimento.

O salão com os caixas fechados, exageradamente encerado, parece um deserto sem os adereços bancários. As faixas anunciando planos de saúde, as cadeiras de plástico, os totens eletrônicos que cospem senhas, as barreiras de ferro atadas por fitas vermelhas, tudo jaz em algum depósito como se também esperasse pela salvação num gesto. Saltar em um impulso e alcançar o outro lado, sentir-se outra vez em terra firme. Acionar em algum ponto o velho piloto automático, seguir antigos rumos.

Como seria bom o retorno a certos descuidos. Tocar sem medo nas coisas, levar as mãos ao rosto. Mas a impressão que persiste, ao menos por um breve instante, é a de que nenhum daqueles equipamentos, agora inúteis, voltará aos seus lugares. Nem mesmo as nossas faces, não por inteiro. Algo de nós terá ficado na outra margem, entre as angústias do ano passado e as angústias deste. Segundo take. A lanchonete do posto de gasolina. Pretendemos repor alguns itens em falta na dispensa.

Acabaram de reabrir as portas, após nova restrição, somos os primeiros clientes. Noto que retiraram as mesas alinhadas rente às janelas de vidro, antes disputadas quase à tapa. Imagino que a atendente sorri, atrás do balcão, sob a máscara, enquanto uma de suas colegas desinfeta painéis plásticos que funcionam como divisórias. Os expositores verticais, coloridos por marcas, foram retirados da passagem, deixando os corredores tão largos quanto as avenidas que cortam a cidade.

E, enquanto aguardamos o processamento das compras, como se o meu pensamento estivesse em fuga, observo a falta de rigor estético que torna funcionais os espaços esvaziados de pessoas. Só o essencial, o básico. Lembro de uma série que assisti, quando ainda assinava canais fechados, sobre como seria o nosso mundo após a extinção da humanidade. O autor do livro que inspirou a série, Alan Weisman, disse numa entrevista que, se isso acontecer, “a natureza finalmente vai destruir tudo”.