Praça Castro Alves escondia ruínas de teatro abaixo da calçada; entenda

Local abrigou vida cultural e social de Salvador por mais de 110 anos

  • Foto do(a) author(a) Alexandre Lyrio
  • Alexandre Lyrio

Publicado em 27 de dezembro de 2019 às 06:50

- Atualizado há um ano

. Crédito: Betto Jr.

O poeta Castro Alves tinha apenas sete anos de idade quando pôs os pés pela primeira vez em um teatro. Décadas antes de o seu próprio nome batizar a mais importante casa de espetáculo do Brasil no século 20, o poeta dos escravos, ainda criança, pisou no São João. Ali, por mais de 110 anos, passou a vida cultural e social de Salvador, seja em recitais do próprio Castro Alves ou em apresentações históricas como a do maestro Carlos Gomes.

De repente, mais de nove décadas depois de um incêndio que destruiu o prédio em 1923 - e de ter seus escombros soterrados para a ampliação da Praça Castro Alves e construção do que hoje é o Palácio dos Esportes - o Teatro São João da Bahia ressurge em forma de achado arqueológico. Uma escavação realizada para a reforma da praça desenterrou o pedaço de uma estrutura que seria do lendário teatro. 

Maravilhados com a descoberta, historiadores, arquitetos e urbanistas ainda se batem sobre o que é a estrutura. Depois de muitos sugerirem de que seria o palco do São João vindo à tona, os especialistas apontam que o achado pode ser desde uma escadaria de acesso à casa de espetáculo, uma parte do foyer ou escada que levava à sala principal ou um pedaço do chafariz que ficava no largo na frente do teatro.

“Pela posição relativa do que se vê nas fotos, ali jamais poderia ter sido o palco. Poderia ser algo no foyer ou a escada que levava à sala principal, como é comum em teatros históricos”, afirma o arquiteto Márcio Campos, professor de Teoria, Crítica e Projeto de Arquitetura da Universidade Federal da Bahia (Ufba). 

“É cedo para considerar que os achados arqueológicos mais importantes do subsolo da praça correspondem ao palco do Teatro São João”, concorda Juarez Bomfim, sociólogo, doutor em Geografia Urbana e especialista no Centro Histórico. Ele diz que, numa visualização de imagens, fotografias e pinturas da época, a estrutura estaria situada geograficamente próximo à entrada do teatro. “E não ao fundo, como costumam situar-se os palcos”.

Dois outros pesquisadores ouvidos pelo CORREIO podem ser a chave para descobrir do que se trata a estrutura. O historiador Jaime Nascimento, do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia (IGHB), cujos trabalhos de conclusão da graduação e do mestrado foram sobre o São João e seu entorno; e a historiadora Maria Antônia Lima Gomes, que desenvolveu trabalho de doutorado sobre o teatro. Ambos estão empolgados com o achado, apesar de não terem certeza absoluta do que se trata.

“A gente tem informações dos espaços que existiam no teatro. Tinha o camarim, tinha o espaço para as orquestras, tinha um arquivo. Mas, onde ficava isso dentro ou fora do espaço geográfico do teatro não se sabe”, afirma Jaime Nascimento, um dos organizadores do livro A Urbanização de Salvador em Três Tempos: Colônia, Império e República. Para o historiador, a estrutura se parece com uma escadaria que dava acesso à parte da frente do teatro.  Foto: Betto Jr/CORREIO Recriação em 3D Já Maria Antônia Lima Gomes, que desde 2014 estuda o São João e concluiu seu doutorado em 2017, está quase certa de que se trata do chafariz que ficava no largo em frente ao teatro. Maria Antônia recriou a estrutura interna e externa do São João em três dimensões, o que ela nomeou de Museu Virtual Teatro São João da Bahia, onde é possível fazer um passeio virtual pelo São João.

Para ela, as chances de ser o chafariz são de mais de 80%. Maria Antônia compara as imagens em 3D criadas pela sua equipe de arquitetos e historiadores com as imagens antigas. Ela aponta os frisos comuns em chafarizes e as chamadas gárgulas, figuras mitológicas utilizadas como escoadouro d´água. “Eu acredito que o achado é a parte maior que contornava o chafariz. Como não pôde ser retirada, então aterraram. Posso estar equivocada? Posso.  Mas em uma margem de erro muito apertada”.

Ainda que seja o chafariz, Maria Antônia considera que ele não deixa de ser um achado do Teatro São João. “O chafariz só vai estar ali por causa do teatro. Ele abastecia a cidade e embelezava. Salvador era uma cidade abastecida por fontes públicas. Não havia sistema de encanamento. Embora não fizesse parte da estrutura do teatro, ele era parte do teatro”.

Se era palco, fonte, chafariz ou escadaria é difícil, por enquanto, saber com certeza. Isso porque não existe mais planta ou qualquer representação gráfica do interior do antigo teatro. O projeto original se perdeu em outro incêndio, o do Palácio Rio Branco, quando Salvador foi bombardeada a mando do presidente Hermes da Fonseca, em 1912. “Talvez agora, com esse achado, seja possível avançar nesses estudos arquitetônicos”, espera Juarez Bonfim.

Achado  Em uma coisa todos os especialistas concordam. Esse é um importante achado arqueológico. Não só o mais importante da obra realizada pela Prefeitura desde a Avenida Sete de Setembro como um dos mais importantes das últimas décadas. Isso porque, por mais de cem anos o Teatro São João foi um dos principais centros culturais da Bahia.

Foi o primeiro prédio a ser construído para ser teatro. Nasceu como um dos maiores teatros das Américas. Tinha capacidade para 2 mil pessoas. “Imagine você o que eram 2 mil pessoas em 1812. Hoje a sala principal do Teatro Castro Alves comporta apenas 1,5 mil pessoas”, compara Jaime Nascimento, para quem pouco importa se o achado era o palco, a escadaria ou o chafariz. “O que importa é que é um pedaço importante da nossa história. Foi um lugar marcante para Salvador e para a Bahia. Foi o teatro mais importante do Brasil em sua época. Um dos maiores das Américas”. Apesar da importância do achado, o professor Márcio Campos  considera que não se deve falar em reconstrução do teatro. “Seria muito pouco sensato. Está perdido há muito tempo. A descontinuidade de uso é imensa na área. Já há um teatro na imediata vizinhança, o Teatro Gregório de Mattos”, afirma Márcio.

Incêndio  O início da construção do Teatro São João se dá em 1806 e é concluído em 1812. Além de ter sido o primeiro teatro que Castro Alves conheceu, também foi o último lugar em que ele teria recitado, em julho de 1871. “Por isso a praça passou a se chamar Castro Alves. Por conta da relação do poeta com o teatro São João. Antes era Largo do Teatro. Mas, nos dez anos de morte do poeta, em 1881, passou a se chamar Praça Castro Alves”, afirma Jaime Nascimento, citando o livro O Teatro na Bahia, de Cílio Bocannera, lançado em 1915.   

O São João acabou destruído por um incêndio misterioso na madrugada do dia 6 de junho de 1923. Naquela noite, antes do incêndio, um temporal desabou sobre a capital baiana. Um dado curioso: a estátua de bronze de Castro Alves estava dentro do teatro na hora do fogo, diz Jaime Nascimento.

Prefeitura faz pesquisa para confirmar relação Dentro dos próximos 30 dias, a Prefeitura de Salvador deverá divulgar o resultado das pesquisas arqueológicas realizadas na Praça Castro Alves para confirmar se a estrutura encontrada em frente ao prédio do Palácio dos Esportes pertence ou não ao Teatro São João, que funcionou na capital, durante o século XIX. A declaração foi dada pelo secretário de Cultura e Turismo de Salvador, Cláudio Tinoco, durante coletiva realizada,  ontem, no canteiro de obras onde as escavações foram reveladas.

“Já conseguimos realizar 77% da prospecção arqueológica prevista para a área que contempla o Terreiro de Jesus, a Praça Cayru, a Avenida Sete e a Praça Castro Alves. Em todos esses trechos, houve planos de arqueologia – aprovados em janeiro desse ano, pelo Iphan – que nortearam todo o trabalho, respeitando os aspectos históricos e culturais”, enfatizou Tinoco.

O secretário  informou que 20% do contrato realizado pela administração pública com as empresas responsáveis pela requalificação dizem respeito justamente às questões arqueológicas, respeitando uma determinação federal sobre obras que envolvam o revolvimento do solo em centros históricos, perfazendo um total de investimentos da ordem de  R$ 2 milhões, liberados pelo Prodetur/Salvador. “Isso representa a seriedade com a qual a prefeitura tem dado à essa questão, pontuou.

Carnaval  Em entrevista concedida à Rede Bahia, ontem,  o prefeito ACM Neto fez questão de ressaltar que não existe risco da área estar fechada para o Carnaval e que a proposta é isolar a parte das escavações, possibilitando que o pavimento esteja livre para os foliões. 

“Estamos estudando uma solução para que a área fique preservada sem alterar o calendário da cidade”, explicou, enfatizando que qualquer decisão respeitará a parceria com o Instituto do Patrimônio Histórico e Ar tístico Nacional (Iphan).

Tinoco fez questão de pontuar que, como a existência de uma estrutura arquitetônica já havia sido apontada pelo Georadar (GPR), não foi novidade alguma encontrar as fundações. “O plano inicial previa 14 meses para toda requalificação da Avenida Sete e Praça Castro Alves, sendo a obra prevista para estar pronta em maio de 2020. No Carnaval, a Praça Castro Alves estará pavimentada em piso compartilhado, e a área da descoberta ficará isolada”, disse o secretário. .

Tinoco enfatizou que o desejo da administração municipal é incorporar a estrutura encontrada à requalificação da praça, possibilitando que a comunidade soteropolitana possa ter acesso ao espaço como uma área de convivência.

Mais de 10 mil peças históricas  são resgatadas O secretário de Cultura e Turismo de Salvador, Cláudio Tinoco,  informou  que já foram resgatados mais de 10 mil itens, entre faianças (cerâmicas) portuguesas do século XVI, cerâmicas de produção local e importação, moedas, cachimbos, contas de colares, ossos e até mesmo garrafas de vidro de produção industrial e artesanal. Todo esse material foi enviado aos laboratórios localizados no canteiro de obras e no Centro de Antropologia e Arqueologia de Paulo Afonso para análise.

“Todo esse material está sendo tratado. Encontramos materiais significativos como arte de uma urna mortuária indígena e isso nos remete a achados pré-coloniais. Além das estruturas da Igreja de São Pedro e uma fonte de água foram outros itens encontrados durante as escavações na altura do Relógio de São Pedro”, disse. 

Informações  O  Superintendente do Iphan na Bahia, Bruno Tavares fez questão de reforçar o fato de que os estudos arqueológicos é que estão dando o direcionamento às obras, antes mesmo do trabalho ter sido iniciado.

 “Vale salientar que o trabalho dos arqueólogos não se resume aos achados, mas, sobretudo, fornecer as informações necessárias, ampliando as pesquisas históricas e correlacionando o material encontrado com as épocas específicas”, finalizou Tavares.

* Colaborou Carmen Vasconcelos