Praia do Flamengo: mais duas 'caixas misteriosas' de navio nazista aparecem na Bahia

No dia 27 de julho, material apareceu na Praia de Santo Antônio, em Mata de São João

Publicado em 1 de agosto de 2021 às 23:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Nara Gentil/CORREIO

A empresária Alba Souza estava cumprindo seu ritual diário de caminhada na Praia do Flamengo, por volta das 6h deste sábado (31), quando se deparou com um objeto estranho na areia. Em outro ponto da caminhada, mais um igual. De longe, parece uma pedra. De perto, é difícil precisar. Mas esses não são os únicos pacotes misteriosos a aparecerem por aqui. No dia 27 de julho, um material muito semelhante foi encontrado na Praia de Santo Antônio, em Mata de São João, litoral norte da Bahia. E, agora, o mais curioso: se trata de parte da carga de um navio nazista afundado no dia 4 de janeiro de 1944, em plena Segunda Guerra Mundial.

Alba mora na Praia do Flamengo desde 2000 e nunca viu nada parecido. Já teve tartaruga morta e resquícios das antigas barracas de praia, mas nada como os pacotes que encontrou neste final de semana. O achado incomum pegou a empresária de surpresa e veio para quebrar a rotina de quem já passou por diversos países, mas optou pela calmaria de uma casa em frente ao mar de Salvador. 

“Vi o fardo praticamente na porta da minha casa. Assim que eu desci para a praia, já achei estranho. Primeiro, achei que era uma pedra porque aqui sempre aparecem blocos que são das antigas barracas”, conta Alba. Quando se aproximou, veio outra suspeita. "Vi que parecia couro de cobra, porque lembra uma escama. Fiquei intrigada achando que era contrabando de peles que alguém jogou no porto de Salvador”. 

Alba encontrou, no sábado, o primeiro fardo na porta de casa e outro na direção do autódromo de Ipitanga. Na manhã deste domingo, um material com as mesmas características estava bem próximo à sua casa. Não é possível dizer se trata-se de um dos encontrados no sábado ou se são três achados, já que a maré pode ter levado e trazido de volta. 

A empresária conta que conversou com funcionários da prefeitura que faziam a limpeza da praia. Segunda ela, eles disseram que tentaram remover o material, mas o peso, aproximadamente 200 quilos, deixou a missão impossível. “Eles falaram que não tinha como, era muito pesado, que iam esperar uma máquina”. 

O material incomum atrai olhares de quem passa na areia e os mais corajosos se aproximam. De início, vem o medo de encostar. O pacote não é muito grande, o que aumenta ainda mais a curiosidade por conta do peso elevado. Ao se aproximar, é possível perceber, em partes rasgadas, que se trata de algo borrachudo, possível de esticar. Envolta, limo e alguns resquícios de conchas.  Foto: Nara Gentil/CORREIO A expressão de quem se aproxima é de dúvida e logo surgem os palpites. “Parece um livro gigante”, “É um pedaço de madeira”, “Acho que é um baú”. Uma testemunha bateu o olho e já soltou um palpite quase preciso: “Isso é coisa de pirata. Deve ter um tesouro aí dentro!”. À essa altura do texto, você, leitor, deve estar se perguntando o que esses pacotes têm a ver com navio de nazista. Então, vamos à explicação!

O CORREIO noticiou na edição de fim de semana o pacote encontrado em Mata de São João e encontrou a provável origem de todo esse mistério. Ela envolve nazistas, armas, piratas e até o óleo que contaminou as praias do litoral nordestino em 2019. Quem desvendou o quebra-cabeças foi o oceanógrafo Carlos Teixeira, professor da Universidade Federal do Ceará (UFC).

Desde agosto de 2018, fardos parecidos foram encontrados em praias do Ceará, Rio Grande do Norte, Pernambuco, Alagoas, Sergipe e até na Flórida, nos Estados Unidos. Pesquisadores notaram um detalhe: uma inscrição dizendo “Made in Indochina”. Essa colônia francesa foi desfeita em 1954, dando lugar a países como Laos, Camboja e Vietnã. Ou seja: o que quer que fossem os objetos, eles tinham sido produzidos há, ao menos, 65 anos.

Carlos Teixeira encontrou um vídeo de 1944 que mostrava pescadores recolhendo objetos parecidos nas águas nordestinas. Os fardos em questão eram a carga de um navio do Exército Nazista que foi afundado no dia 4 de janeiro daquele ano, no auge da Segunda Guerra Mundial. Em um artigo, o professor explica que a borracha, usada nos pneus e armas, não era produzida no território alemão e precisava ser importada de lugares como a Indochina.

Para percorrer os 10 mil quilômetros que separavam esses países, os alemães utilizavam navios chamados “Blockade Runners”, que eram ágeis e conseguiam furar os bloqueios marítimos feitos pelos Aliados. Também costumavam usar rotas alternativas, contornando a América do Sul e chegando à Europa pelo Oceano Atlântico.

Mas nem sempre a estratégia dava certo e, naquele 4 de janeiro de 1944, o SS Rio Grande - o navio alemão usava um nome em português para confundir os inimigos - foi interceptado pelo contratorpedeiro USS Jouett e pelo cruzador USS Omaha no mar entre Natal e a Ilha de Ascensão, no nordeste do Brasil, ponto estratégico para os Aliados - rivais dos nazistas.

Os alemães tentaram fugir, mas foram abatidos pela Marinha Americana. Uma pessoa morreu, 71 ficaram feridas e o navio, junto com sua carga, foi parar a 5,7 mil metros de profundidade - e lá ficou até agosto de 2018.

O que trouxe a carga de volta à superfície ainda é mistério, mas há duas teorias principais: uma a de que o desgaste natural abriu um buraco no porão do navio, deixando a borracha escapar. A outra, mais aceita, especula que um grupo de piratas teria ido até o local do naufrágio para recuperar outros itens do SS Rio Grande: 500 toneladas de estanho, 2.370 de cobre e 311 de cobalto, sendo este último o objeto de desejo dos piratas.

No processo de retirada do metal nobre, a borracha, que boia, teria escapado. Então, as correntes marítimas completaram o serviço e, desde então, esses “fardos misteriosos” têm aparecido nas praias do litoral nordestino.

Procurada pelo CORREIO, a prefeitura de Salvador informou que a Empresa de Limpeza Urbana de Salvador (Limpurb) foi acionada e irá verificar o material. A Polícia Civil disse que não houve registros e a Polícia Militar, a Marinha e o Inema não responderam até o fechamento da reportagem.   

*Com orientação do chefe de reportagem Jorge Gauthier