Professores baianos mostram que são os mestres da reinvenção

Conheça seis educadores que se adaptaram às aulas virtuais em tempos de isolamento social e pandemia

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  • Daniel Aloísio

Publicado em 15 de outubro de 2020 às 06:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Arquivo pessoal

É hora da aula. A professora Ana Rita Macedo, 43 anos, veste a fantasia e, com o auxílio da filha Ana Luiza, grava as cenas da próxima história infantil. Depois, a sobrinha Thalita monta o vídeo, insere efeitos e finaliza a produção amadora, que é enviada para os pais dos 20 alunos de ensino infantil da Escola Municipal São Lázaro, localizada na Fazenda Angico, zona rural de Ribeira do Amparo, nordeste da Bahia. “Envio quatro vídeos por semana. E tenho que repetir 10 vezes para um prestar. Mas vale a pena. O retorno de pais e alunos é positivo”, disse a professora. 

O exemplo de Ana Rita é só um dos vários existentes entre professores baianos que precisaram se reinventar durante a pandemia. Acostumados com as salas de aula lotadas e os desafios da educação presencial, os profissionais da educação tiveram que adaptar, de uma hora para outra, seu trabalho à realidade digital. E assim fazem há sete meses, desde a chegada da covid-19 no Brasil, em março de 2020.  “Essa reinvenção mexe com fatores psicológicos, emocionais e com a própria dinâmica familiar dos professores. Eles ficaram mais atarefados, tendo que reorganizar mentalmente e didaticamente o seu trabalho. A aula remota convida o outro a entrar num espaço que é seu e muitos docentes não se sentem à vontade com essa nova realidade. Tiveram que superar os seus próprios medos e timidez para continuar a fazer educação”, explicou Niclecia Ferreira Gama, psicopedagoga e mestranda em Educação e Contemporaneidade na Universidade do Estado da Bahia (Uneb).   Ainda segundo a especialista, os professores tem sido verdadeiros heróis nessa pandemia, mas pouco reconhecidos. “Eu acho injusto que somente os profissionais de saúde recebam homenagens enquanto os professores também estão se matando. Nós temos sido heróis anônimos e acho que a sociedade tem que olhar mais para essa pandemia com o olhar do professor”, defendeu.  

Nesse quinta-feira (15), dia em que se comemora o Dia do Professor, a comemoração vai ser diferente da que acontece tradicionalmente nas escolas baianas. As homenagens presenciais darão lugar às feitas de forma virtual, já que as aulas no estado ainda não foram autorizadas a voltar.  

Como forma de homenagem a essa categoria, o CORREIO colheu relatos de seis professores que tiveram que se reinventar durante a pandemia. Além da professora Ana Rita, que você conheceu no início da reportagem, tem professor que virou ‘youtuber’, que mergulhou na arte da edição de vídeos, que assumiu funções que não eram suas, que teve que se auto adaptar para conseguir ministrar aulas e que participa de cursinho pré-vestibular online e gratuito para não ficar sem dar aula. Confira: 

Ana Rita Macedo, a professora sertaneja que se tornou “atriz”    “Quando me falaram que as aulas seriam por vídeo, que teríamos que usar o aplicativo zoom, que eu nem sabia como mexia, eu logo fiquei doida, morrendo de vergonha. Pensei logo em pegar vídeos da internet e mandar pra eles, mas então concluí que o aprendizado não seria legal, pois os meus alunos tinham que me ver. Então resolvi eu mesmo fazer vestir os personagens e fazer os vídeos”, conta a professora do ensino infantil que você conheceu no início do texto.   Ana Rita não economiza em beleza nas suas fantasias (Foto: Arquivo pessoal) Ana Rita é a responsável por criar o roteiro dos vídeos e providenciar todo o figurino. Gasta R$ 200 por mês com material. “E não são apenas vídeos de histórias. Também ensino a eles a brincarem em casa, fazerem atividades lúdicas, e faço gravações de aulas normais. Envio quatro vídeos por semana. E tenho que repetir 10 vezes para um prestar. Mas vale a pena. O retorno de pais e alunos é positivo”, disse a professora. 

Todos os 20 alunos de três a cinco anos que são da responsabilidade de Ana Rita assistem aos vídeos e fazem as atividades propostas pela professora. “Apenas uma criança tem dificuldade de participar, pois a mãe não tem celular. Mas mesmo assim ela acaba fazendo a atividade pelo celular do primo, que mora na casa vizinha”, explicou. A professora sabe que a forma lúdica de fazer educação contribuiu no interesse dos alunos e evitou a evasão escolar.   

“Teve um dia que eu não tive tempo de gravar e peguei um vídeo da internet. Uma mãe ligou para mim dizendo que o filho não queria assistir, pois eu não estava na imagem. Outra avó me mandou uma mensagem dizendo que eu encanto também os idosos, pois eles adoram me assistir. Eu não achava que a repercussão ia ser tão boa”, diz a professora, orgulhosa do trabalho realizado.  

 

Daniel Veras Ribeiro, o engenheiro que virou editor de vídeo e não parou as aulas práticas durante a pandemia (Foto: Arquivo pessoal) Como ministrar à distância e com qualidade as aulas práticas, que normalmente acontecem em laboratórios? O professor Daniel Veras poderia somente ter pego vídeos do YouTube e enviado para seus alunos. “Mas aí não teria a mesma qualidade. A gente tem o nosso próprio roteiro de aula prática, como ia pegar um qualquer da internet?”, questionou o professor, que decidiu colocar a mão na massa (e na câmera) e gravar os próprios vídeos.  

O professor virou editor e o laboratório virou um estúdio de cinema. “Normalmente, nas aulas práticas eu faço a experiência e eles acompanham o processo, pois são materiais complicados, que eles não poderiam manusear normalmente. Então, com os vídeos que criei, a aula se torna muito semelhante da que ele veria presencialmente”, afirmou Daniel, que reconhece a habilidade na filmagem vinda do seu pai, o publicitário Everaldo Ribeiro.  Professor de engenharia montou estúdio de cinema no laboratório (Foto: arquivo pessoal) “Quando pequeno eu saia com ele para filmar. Gostava disso, mas não vejo minha vida longe dos números”, afirmou. Se isso é verdade, uma prova talvez seja a atuação do professor durante os meses em que as aulas na Ufba foram suspensas. No Laboratório de Ensaios em Durabilidade dos Materiais (Ledma), que Daniel coordena, as atividades continuaram. A ciência não poderia parar.  

“Temos um time de 19 pessoas comigo. Nos dividimos em três grupos, cada um ia duas vezes por semana. Os alunos tiveram que organizar a pesquisa de um modo que ela fosse feita nesse prazo e conseguimos manter praticamente a mesma produtividade”, afirma o professor. Foi durante a pandemia que aconteceu, pela primeira vez na história, uma defesa de doutorado do curso de Engenharia Civil da Ufba.  

A estudante, Fernanda Nepomuceno Costa, desenvolveu um método inovador e menos poluente de produção de cimento a partir de resíduos da construção civil. O orientador foi o professor Daniel. “Os resultados finais da pesquisa saíram durante a pandemia. Tenho muito orgulho desse trabalho”, concluiu.  Fernanda e Daniel desenvolveram cimento sustentável durante a pandemia (Foto: arquivo pessoal) Rodrigo Perez Oliveira, o professor ‘youtuber’ da Ufba  “Youtuber é uma palavra muito forte”. É assim que inicia o relato o doutor em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e professor de Teoria da História e Pensamento Político na Universidade Federal da Bahia (Ufba), Rodrigo Perez Oliveira, 34 anos. “É que há uma dimensão pejorativa. O que eu fiz foi acentuar algo que já gostava de fazer, que é explorar as redes sociais como ferramenta de atividades extensionistas”, disse o professor, com certa modéstia.      Professor Rodrigo grava vídeos na frente de sua biblioteca pessoal (Foto: arquivo pessoal) No seu canal no YouTube, mais de 22 mil pessoas já viram os 46 vídeos que ele publicou desde o dia 18 de junho de 2020. São mais de 1,3 mil inscritos no canal. “Na área de história, de professor universitário, eu desconheço algo parecido”, afirmou. É nessa plataforma que ele ministrou, durante a pandemia, um curso de extensão que teve 660 interessados. A facilidade em lidar com o tecnológico vem dos cinco anos de experiência como professor de ensino à distância numa universidade particular. No seu canal do YouTube, no entanto, não há ganhos financeiros.  “A internet tem principalmente uma área de atuação no campo da extensão, que é um pilar estratégico de qualquer universidade. O remoto não substitui o presencial, mas ela tem o seu lugar como algo complementar ou que pode atingir um público distante. Eu tenho retorno de professores do ensino básico que usam esses vídeos para sua formação continuada. Entendo que esse é um caminho sem volta e as universidades devam oferecer ensino para a comunidade através de atividades extensionistas no meio digital”, defende o professor. Durante o semestre suplementar da Ufba, que é realizado desde o dia 8 de setembro, Rodrigo passou a ministrar a disciplina História da Historiografia Brasileira, que funciona da seguinte maneira: o professor publica videoaulas no seu canal do YouTube Rodrigo Perez, os alunos assistem ao conteúdo, leem textos suplementares e participam de um encontro presencial na quinta-feira de noite. Os vídeos ficam disponíveis para qualquer pessoa que queira assistir. “Ou seja, quem não estiver matriculado consegue acompanhar a aula”, disse Perez.  

Veronica Leite, a professora da rede estadual que entrou num cursinho gratuito para não deixar de dar aulas Das escolas que ainda não conseguiram se adaptar à realidade da pandemia, exemplos não faltam da rede estadual de ensino. Foi até difícil para o CORREIO encontrar professores da rede que estejam se reinventando, já que praticamente não há ensino remoto ou mesmo suplementar nas escolas estaduais. Para não ficar parada, o jeito encontrado por Verônica Leite, a professora Véu, foi partir para a solidariedade: ela ensina de forma gratuita num curso pré-vestibular online chamado de Enem Solidário.   Professora Véu se dedica a cursinho pré-vestibular gratuito (Foto: arquivo pessoal) “Na rede estadual, não houve por parte do Governo do Estado a oferta de uma plataforma que possibilitasse aos professores fazerem as aulas. Temos também uma parte muito grande de alunos que não tem acesso à internet. A gente tentou manter o vínculo, mas o retorno foi muito pouco. Os alunos dizem que ou não tem internet ou não tem equipamento para participar da aula”, lamentou a professora, que vive em Brumado, no centro-sul baiano.  No Enem Solidário, a qual ela faz parte, os alunos já formados ou do terceiro ano de escolas públicas recebem aulas voltadas para a realização do Exame Nacional do Ensino Médio. O projeto foi criado por um professor da rede particular de Brumado, mas conta com participação de 50 voluntários de várias realidades e 200 alunos de diversas cidades, até fora da Bahia.  

Atualmente o cursinho conta com estudantes residentes nas seguintes cidades baianas: Brumado, Anagé, Aracatu, Vitória da Conquista, Chapada Diamantina, Ituaçu, Livramento e Dom Basílio. Fora da Bahia, estudantes de Mossoró, Caruaru, Santo André, Belo Horizonte, Goiania, São Paulo e Rio Branco são alcançados.  

“Eles são divididos em três turmas. Muitos alunos da rede estadual participam desse cursinho para se preparem pro vestibular. Tenho muito orgulho desse projeto, pois ele ajuda a diminuir a desigualdade entre os estudantes do ensino público e do privado”, afirmou a professora Véu. 

Patrícia Dapper, a coordenadora do ensino infantil que se viu professora por causa da pandemia    Antes da pandemia, a coordenadora do ensino infantil da escola particular Concept, de Salvador, Patrícia Dapper, exercia funções de costume, como ajudar os professores no planejamento das aulas, atendimento aos pais e apoio emocional. “Só que com as aulas remotas, para oferecer mais oportunidades educacionais, passei a atuar também como professora, que é a minha formação. É que algumas famílias querem mais conteúdos para os filhos. Outras querem menos. Meu trabalho é justamente para aqueles que querem esse algo a mais”, explicou.   Patricia Dapper tem que atuar como professora na pandemia (Foto: arquivo pessoal) Sem cobrar nada a mais de mensalidade, atividades diferenciadas e opcionais foram ofertadas para os alunos. A professora Patrícia, que ensina inglês, é a responsável por duas dessas novas aulas: Early Years, voltada para a educação infantil, e Lower School, voltada para os alunos do 4º e 5º anos do ensino fundamental. Todas correspondem a leitura de histórias em inglês, de acordo com a idade dos pequenos. “O trabalho realmente aumentou, ao mesmo tempo que a exposição com a turma diminuiu. Ainda continuo com as atividades de antes, mas é algo gratificante, pois queremos evitar a evasão escolar. Cada conquistazinha é grande. A educação infantil é mais complicada, pois precisa do intermédio de um adulto. Algumas crianças não estão mais conseguindo participar, pois os pais estão voltando o trabalho. Então temos que se reinventar para chegar até eles. É um desafio constante”, disse Dapper.  Além das atividades de contação de história, outros serviços estão sendo oferecidos pela Concept sem cobrança a mais de mensalidade, como o Mindfulness, que são exercícios flexíveis que ajudam os alunos a focarem no presente, mantendo o bem-estar pessoal, e o Slow Food, que trabalha com os pequenos a alimentação, na educação do gosto e treinamento dos sentidos, no consumo responsável e na culinária ecológica e saudável.   

Silmaria Reis dos Santos, a professora de ensino privado que teve que se autoadaptar para conseguir dar aulas   A vida dessa professora de história é feita de reinvenção. Logo depois de ter se formado no ensino médio, Sillmaria Reis dos Santos, 30 anos, foi para São Paulo para trabalhar, mas logo entrou num cursinho popular, que conciliou durante um ano e meio com empregos em bar, padaria e telemarketing. “Chegava a dormir quatro horas por dia”, afirmou. A recompensa foi a aprovação em licenciatura de história na Universidade Estadual Paulista (Unesp).   Silmaria transformou os desafios em oportunidades (Foto: arquivo pessoal) Se passaram 10 anos e Silmaria, que hoje é mestra em história pela Ufba, voltou para a casa onde nasceu, no povoado Limoeiro, em Campo Formoso, centro-norte baiano, para ensinar num colégio particular da região, o Presbiteriano Augusto Galvão. Veio a pandemia do novo coronavírus e uma nova reinvenção: a de fazer aulas online.   “Por minha casa ser na zona rural, o sinal de celular não é bom. A internet também não era boa. Tivemos que pagar mais caro para que melhorasem o serviço aqui. Mas a escola também não tinha esse foco nas aulas virtuais. Foi uma novidade, pois todos eram acostumados com aquele formato: aulas e livros. O difícil foi apreender a usar o Google Meet, aplicativos...  os técnicos nos auxiliaram, mas tivemos mesmo que nos virar nos 30”, relatou a jovem.  A mudança na aula não aconteceu apenas na forma como ela era realizada, mas também na metodologia escolhida. “Passei a utilizar mais recursos próximos aos jovens e a internet, como documentários, filmes e memes. Acho que as aulas virtuais não podem ser engessadas, como era presencialmente”, defende.  

Professores na Bahia:  Se houvesse um só perfil dos mais de 188 mil professores baianos, seria o de mulher, branca, entre 40 e 49 anos, e apenas com a graduação completa. Esses são os resultados mais recentes levantados pela Sinopse Estatística da Educação Básica do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP). Seis em cada dez professores baianos são mulheres.  

Quase 20% dos professores atuam tanto em escolas privadas quanto nas redes públicas estadual e municipal de ensino. 18,8% dos professores tem mais de 50 anos. Só 0,7% tem idade menor que 24 anos. Entre 25 e 29 anos, a estimativa não passa de 5,8%. A maior média de idade é entre 40 a 49 anos com 30%. Os com idade de 30 até 39 anos chegam a 26%.  

A maioria dos professores possui apenas uma faculdade, seguidos pelos que adquiram uma especialização, os mestres e os doutores. Esses últimos são apenas 550 em comparação com os 117 mil graduados, 62 mil especialistas e 4 mil mestres.     (Arte: Morgana Miranda/Estudio Grida) * Com orientação da chefe de reportagem Perla Ribeiro.