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Da Redação
Publicado em 1 de outubro de 2020 às 06:00
- Atualizado há 2 anos
Na contramão do que aconteceu no Brasil como um todo, a participação de candidatos que se autodeclaram negros (pretos ou pardos) caiu em Salvador entre 2016 e 2020. Segundo dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), nas eleições deste ano - dados atualizados às 16h40 de ontem - 1.605 negros pediram registro de candidatura à Justiça Eleitoral, juntos, eles representam 79,5% de todos os pedidos de inscrição no pleito. Em 2016, os 1.071 candidatos negros representavam 83,47% dos pedidos de registro. A redução é de 3,97 pontos percentuais. >
Nacionalmente, os pretos e pardos somados são 49,92% dos 549.235 inscritos, um aumento de 2,16 pontos percentuais entre as eleições de 2020 e há de 4 anos atrás. Na Bahia há uma estabilidade. Entre os dois pleitos, foram inscritas 3.211 candidaturas negras a mais neste ano (32.198, 78,59%), uma redução de 0,15 pontos percentuais - em 2016 os negros eram 78,74% dos 36.806 candidatos que solicitaram inscrição da candidatura. >
A queda na proporção de candidatos inscritos que se declararam negros, em Salvador, não é alarmante e não indica uma tendência de redução na representação de pretos e pardos dentre os postulantes, aponta o professor do Departamento de Ciência Política da Ufba, Cloves Oliveira. “Não considero isso significativo. Continuamos com uma participação muito significativa de negros nas eleições. Temos quase 80% de candidatos negros e isso é muito relevante. A oscilação está dentro da possível indicação de que as pessoas podem variar a forma como se autodeclaram”, afirma o professor.Os candidatos negros são maioria no estado e na capital, onde as pessoas negras também correspondem a maior parte da população. Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua Anual de 2019 (1ª visita), do IBGE, 79,2% dos soteropolitanos se identificam negros. Dentre os baianos, se autodeclaram negros 80,1% do povo da Bahia.>
Vagas O crescimento no total de candidatos negros - assim como da quantidade de candidatos como um todo - e a redução de 94 vagas para as câmaras de vereadores baianas elevou a concorrência por uma vaga dentre os candidatos pretos ou pardos. Atualmente, pouco mais de 6 postulantes negros buscam fazer parte da próxima gestão, que oferece 5.234 vagas dentre prefeitos, vereadores e vices. Em 2016, eram cerca de 5,4 negros para cada uma das 5.328 vacâncias.>
Em Salvador, cerca de 28 candidatos negros buscam uma vaga na gestão municipal. A concorrência era de quase 20 postulantes pretos ou pardos para a mesma quantidade de vacâncias em 2016.>
Para o cargo de prefeito de Salvador, se declararam negros 6 dos 9 candidatos, ou cerca de 66,6% dos concorrentes. Em 2016, eram 5 pretos ou pardos buscando trabalhar no Palácio Thomé de Souza. Em 2020, a quantidade absoluta e porcentagem de vices negros é a mesma que a dos prefeitos. Na última eleição, apenas um candidato a vice declarou ser não-negro, o que faz com que a proporção de negros entre os postulantes ao cargo caia cerca de 20 pontos percentuais. >
Dentre os vereadores, são 1.264 negros buscando integrar o poder Legislativo da capital, o que corresponde a 79.6% dos 1.587 concorrentes. Em 2016, os pretos ou pardos somavam 883 postulantes, o que correspondia a 83.6% de todas as 1.056 candidaturas para a Câmara Municipal de Salvador. >
Um acréscimo de 3.054 candidaturas negras para as câmaras de vereadores da Bahia foi registrado neste ano na comparação com o pleito de 2016. A proporção de candidatos pretos ou pardos ao legislativo permaneceu na casa dos 79%, com uma baixa de 0,32 pontos percentuais na representação dos negros entre os inscritos para concorrer a vagas ao parlamento municipal em 2020.>
Recorte De uma eleição municipal para a outra, a porcentagem de candidatos pardos em Salvador caiu em 7,74 pontos percentuais, representando 40,81% dos inscritos nas eleições 2020. Se identificaram como pardos 655 postulantes, 135 a mais que em 2016.>
Por outro lado, mais postulantes da capital se declararam pretos, o que elevou o recorte em 3,77 pontos percentuais. Em 2020, os pretos são 38,69% dos candidatos, o que corresponde a 621 pessoas. Há quatro anos, apenas 374 dos que solicitaram candidatura se identificaram como tal.>
A proporção de candidatos pretos que solicitaram a inscrição da candidatura também cresceu em 4,3 pontos percentuais na Bahia. São 8.171 candidatos com esta identificação contra 5.756, em 2016. Proporcionalmente, os pretos representam 19,94% dos postulantes baianos em 2020.>
O crescimento na proporção de pessoas pretas dentre os candidatos chama atenção do professor Cloves Oliveira. “É muita gente preta simbolicamente marcando presença e aparecendo na propaganda, se colocando como candidato diante das comunidades que procura representar e sendo porta-voz de discursos de afirmação de interesse dos grupos de pertencimento”, comemora.>
Para ele, a migração de pardos para pretos que foi observada em Salvador é um processo de aproximação da raça negra, como ela é vista socialmente: “Quando o pardo migra para o preto, é um processo de afirmação da identidade, uma declaração política com a identidade de negro”. >
Os registros de candidatura ainda serão analisados pelos juízes eleitorais, que pode aprovar o registro ou tornar os postulantes inaptos. O prazo para concluir o julgamento é 20 dias antes do pleito, que acontece em 15 de novembro. >
Causas O professor ressalta que a declaração de grande parte dos candidatos é preenchida por secretários do partido, o que implica em uma heteroclassificação - o postulante passa a ser identificado como ele é visto, não, necessariamente, como ele se identifica. Oliveira ainda indica que existe um processo de “ajuste de conduta” com a mudança da declaração dos candidatos passando de pardo para branco ou para preto.“Essa mudança ocorre dentro de uma margem de coerência que tem a ver com uma ambiguidade da classificação das pessoa e a pressão do contexto de maior debate sobre as questões de reconhecimento”, diz Oliveira.A pandemia é apontada como um dos fatores que pode ter reduzido a representatividade dos negros dentre os candidatos. A antropóloga e coordenadora da Pós-Graduação em Estudos Étnicos e Africanos (Pós-Afro) da Ufba, Jamile Borges, acredita que o coronavírus fez com que as pessoas ficassem menos expostas a situações de embate eleitoral e ainda reduziu as possibilidades do movimentos sociais de apresentar mais candidaturas viáveis. >
“Em geral, os candidatos que se autodeclaram negros são oriundos de movimentos sociais. A pandemia trouxe uma precarização das relações e o empobrecimento. Os partidos passaram, especialmente os menores, a ter menos tempo de contato e verba, o que dificultou a emergência de novos nomes”, afirma. Coordenadora do Pós-Afro aponta que pandemia dificultou a viabilização de novas candidaturas negras (Foto: Reprodução/Arquivo Pessoal) O fim das coligações para o cargo de vereador é causa da redução da representação dos negros dentre os candidatos, afirma o coordenador do Coletivo de Entidades Negras, Marcos Rezende, que é historiador e mestre em desenvolvimento e gestão social. >
“Com o fim das coligações partidárias, as siglas devem lançar seu próprios nomes possíveis, buscar mais candidatos, o que, em números absolutos, pode aumentar a quantidade de candidatos negros. Entretanto, cada partido terá mais candidatos brancos que, tradicionalmente, recebem mais recurso e acabam sendo eleitos”, argumenta. >
Com o fim do prazo para a inscrição das candidaturas, agora, é hora de ver como o cenário montado em Salvador irá ressoar na composição da próxima gestão. A Cientista Política e professora do Ifba campus Feira de Santana, Waneska Cunha, aponta que os brancos são os mais votados, mesmo quando estão em menor número entre os candidatos.>
“O fato de Salvador ter uma maioria de candidatos negros não implica que haja uma representação política de negros. Há uma disparidade entre as candidaturas e os eleitos. Durante o processo de recrutamento e seleção entre os candidatos e eleitos, existem outros fatores, como o racismo estrutural, que são uma barreira para que os candidatos negros ocupem esses cargos de poder”, afirma a cientista política.>
A redução da porcentagem de candidatos negros na eleição pode aprofundar a sub-representação da população negra na classe política do município, alerta a fundadora da Marcha do Empoderamento Crespo, Naira Gomes. Para ela, essa falta de representação restringe as pautas prioritárias da cidade.“O ingresso de populações marginalizadas em locais de poder e decisão faz com que sejam pautas outras prioridades, isso leva a política para os becos, as escadarias, as vielas. A representação é um recorte fundamental para a construção de políticas públicas de qualidade”, afirma Gomes.O ideal seria que a classe política da capital representasse a demografia da sociedade, diz Cunha. “Precisamos que a câmara tenha a cara da cidade, é importante que as pessoas sejam representadas no espaço político. Por isso, é importante estar atento ao voto e levar os recortes de raça e gênero em conta para fazer essa decisão”, afirma a cientista política, que conclui: “uma câmara desigual é reflexo da desigualdade social da sociedade brasileira estruturada pelo racismo”.>
Cota Mesmo com a redução da proporção de candidatos negros, suspeitas de declaração falsa como preto ou pardo já foram apontadas na Bahia e em outros estados. A mudança na autodelcaração é ligada à decisão liminar do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Ricardo Lewandowski, que adianta a obrigatoriedade da divisão proporcional de recursos do fundo eleitoral e o tempo de propaganda no rádio e TV entre candidatos negros e brancos nas eleições. >
A decisão será submetida à análise do plenário da Corte. Em agosto, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) havia decidido que as regras entrariam em vigor apenas nas eleições de 2022. >
A declaração racial de um candidato é fruto de uma autodeclaração, ou seja, não existe uma verificação da veracidade de cada alegação. O processo é o mesmo no IBGE. >
Na revista retratos, do IBGE, de maio de 2018, o pesquisador da Coordenação de População e Indicadores Sociais do instituto, Leonardo Athias, explica que a autodeclaração é um preceito de direitos humanos. “A identificação é da pessoa, é ela que sabe como se entende, porque é uma interação social, uma percepção de si mesma e do outro. Eu não vou classificar o outro, até porque muitas vezes isso foi feito para segregar, para perseguir”, aponta.>
A fundadora da marcha do empoderamento negro aponta que os casos de suspeitas de declarações falsas podem ser tanto fruto de uma confusão sobre as a própria identidade, mas também uma fraude para conseguir mais votos ou recursos. >
“É possível que pessoas estejam confusas porque o Brasil conseguiu diluir e confundir a identidade racial. Entretanto, existem casos de pessoas brancas que se autodeclaram negras para utilizar uma vaga com cota ou o fundo eleitoral. Isso é um atentado contra as políticas afirmativas”, aponta.>
*Com orientação da subeditora Fernanda Varela>