Prova não avalia, aula não ensina: 'Espero que tenham percebido a mensagem do vírus'

Fundador da Escola da Ponte, José Pacheco comenta o impacto da pandemia no sistema de ensino e mostra por que a educação que temos não nos serve mais

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  • Priscila Natividade

Publicado em 1 de agosto de 2021 às 11:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Divulgação

Março do ano passado, início de pandemia. Prédios escolares fechados. Ninguém aprendeu, na escola, sobre a crise que vivemos. Uma avalanche de dúvidas e angústias. Os três endereços de e-mail e o WhatsApp do educador português, José Pacheco, ficaram repletos de pedidos de ajuda. Eram professores amigos de um dos principais estudiosos - e críticos - do modelo tradicional de educação. Todos muito preocupados, diante da sacudida em todo sistema educacional do planeta.

Nesse contexto, o idealizador da Escola da Ponte, em Portugal, que, na década de 70, revolucionou o ensino público ao mostrar que é possível construir uma escola livre de paredes, não podia ter outra atitude que não fosse a de solidariedade. José Pacheco marcou uma sessão no Zoom onde reuniu centenas de professores:

“É necessária uma nova construção social de aprendizagem”, ele disse. E mais: ninguém dá aula. Constrói-se projetos a partir de necessidades, desejos, sonhos, talentos. Analisa-se. Media-se o desenvolvimento de competências. Orienta-se sobre como pesquisar, buscar conhecimento. Ou seja, uma subversão aos paradigmas do método instrucionista da escola comum.  

“Ligadas as câmeras, era evidente o espanto no rosto dos professores que haviam assistido à conversa. Aulas online, as videoaulas, as ‘atividades’, ‘cartilhas’ são instrumentos inúteis. Se estivermos em equipe e dermos autonomia ao ato de aprender, podemos responder efetivamente às necessidades de cada um”. Por que o sistema de educação que temos – já desde de muito tempo - não faz mais sentido? Veja na entrevista. 

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1) Qual a proposta da Escola da Ponte e como esse modelo já era inovador lá na década de 70? Que contribuição podemos trazer para a educação nos dias de hoje?  

Na Escola da Ponte, a decisão de mudar foi de origem ética. Encontrei jovens analfabetos, que tinham sido ensinados do modo que eu antes ensinava. Se eu continuasse a trabalhar do modo como, até então, havia trabalhado, aqueles jovens continuariam sem saber ler. Tomei consciência de que, dando aula, eu não conseguiria ensiná-los. Há cinquenta anos, num tempo em que nem sequer havia computadores, a Escola da Ponte provou a possibilidade de romper com o ciclo vicioso da reprodução, conseguiu que uma maioria de alunos oriundos da pobreza alcançasse a excelência acadêmica e a inclusão social.Por isso, insisto na reflexão sobre aquilo que nos diz a Constituição. Ela consagra o direito à educação, ao dizer que é dever do Estado garantir a educação a todos. Se o modo como a escola funciona nega a muitos seres humanos o direito à educação, ela não pode continuar a ser gerida dessa forma.  2) Por que é há uma resistência tão grande em tornar a aprendizagem um processo em que o aluno seja protagonista?  

Quando modificamos o modo, asseguramos a todos o direito de ser sábio e feliz. E conseguimos fazer isso na escola pública. Continuamos dependentes de um sistema de ensino em que alunos do século XXI são ensinados por professores do século XX, com recurso a práticas do século XIX. Precisamos de uma aprendizagem e de uma educação do século XXI. As escolas resistem à mudança, não inovam, porque não são geridas por critérios de natureza pedagógica, mas por burocratas. 

3) Aula não ensina, prova não avalia. Por que a aula como é ministrada hoje, já não faz mais sentido? 

Quase não existe avaliação nas escolas. Apenas classificação, que nada significa. O Ensino Médio atira a culpa para o Fundamental, o Fundamental para o Jardim Infantil e este, por sua vez, atira as culpas para as famílias. É assim tão difícil entender que do que se decora para uma prova, e depois de “vomitado” se esquece, pouco ou nada fica? Mais exames não melhoram o sistema, porque não é a preocupação com o termômetro que faz baixar a temperatura.Estou a falar de projetos que produzem excelência acadêmica e inclusão social e onde não há organização por idades, aulas ou turmas, que são dispositivos sem sentido nenhum, sem fundamentação científica. Conceber uma nova construção social de aprendizagem onde todos aprendem é possível. 4) Como a educação na pandemia 'sacudiu' a escola tradicional que você sempre questionou?  

A pandemia abalou o sistema. Demonstrou que escolas não são prédios, que escolas são pessoas. Espero que os educadores tenham percebido a mensagem do vírus. O ensino remoto permanece tão inútil como o presencial. Será preciso passar de um sistema de ensino para um sistema de aprendizagem, numa nova construção social de educação.

E não há alunos deficientes, mas práticas deficientes. As escolas dispõem de excelentes professores, a trabalhar do modo errado. É preciso que haja gente, educadores conscientes da necessidade e possibilidade de mudança. Que saibam escutar sonhos e necessidades da comunidade. E que ajam em função da lei e da ciência.   'O projeto humano é um projeto coletivo', destaca o educador português (Foto: Divulgação) 5)  O que, de fato, é determinante para a aprendizagem?  Que saber é esse que acontece e se aprende, naturalmente?   

Por quê 50 minutos de aula, se a aprendizagem acontece 24 horas por dia? A aprendizagem é antropofágica. Não se aprende o que o outro diz, apreendemos o outro. Um professor não ensina aquilo que diz, ele transmite aquilo que é. Poderá acontecer aprendizagem em sala de aula, se forem criados vínculos e esses vínculos não são apenas afetivos, também são do domínio da emoção, da ética, da estética... Se tentarmos recordar de um professor de quem não gostamos, compreenderemos porque pouco, ou mesmo nada aprendemos nessa disciplina. 

5) O que é preciso ser feito, na prática, para que essa transformação ocorra?  

Um projeto humano é um projeto coletivo. Pais e professores do mesmo lado. Sozinho, pouco ou nada eu poderia fazer. Constituímos uma equipe. O papel essencial será o da criação de condições de reelaboração da cultura pessoal e profissional dos educadores. Essa transformação, custa tempo e sofrimento. Decidimos habitar um mesmo espaço, derrubar paredes, juntar alunos.A formação de professores continua imersa em equívocos, cativa de um modelo de formação cartesiano. Prevalecem práticas carentes de comunicação dialógica, culturas de formação individualistas, de competitividade negativa, de que está ausente o trabalho em equipe. 7) O que podemos chamar hoje de tecnologias educacionais?   

As novas tecnologias são incontornáveis. A Internet não é uma ferramenta, é uma sociedade. Apenas será necessário saber o que fazer com as novas tecnologias. É certo que as escolas se têm enfeitado de novas tecnologias, mas sem lograr intensificar a comunicação e a pesquisa. O modo como as escolas utilizam a Internet fomenta imbecilidade e solidão, quando congelam as aulas nos computadores. Com ou sem novas tecnologias de informação e comunicação, a escola precisa ser reinventada.  

8) Como você enxerga a educação básica no Brasil?  Acredito nos professores. Os brasileiros deveriam procurar caminhos de alforria científica e a sua maioridade educacional, sem prescindir do que venha do estrangeiro. Novidades importadas, como a aula invertida, por exemplo, não passam de inovações requentadas.No meu vaguear do Oiapoque ao Chuí, questionei o meu etnocentrismo europeu. Na presença de povos pré-colombianos, reencontrei Darcy, Agostinho, Montessori, Dewey, Anísio. Em comunidades indígenas, me encantei com o modo delicado, sábio, como educavam os seus filhos: “Segue a criança!”. Reencontrei Freinet, Illich, Papert e Maturana nas favelas. Lá, não havia apenas tráfico, prostituição, milícias; havia autonomia, cooperação... vizinhança.

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Reencontrei Morin, Nise, Milton, Rogers e o amigo Tião, em muitos quilombos, onde se transformava em ato o provérbio africano que diz ser necessária uma tribo para educar uma criança. Reencontrei Freire, Nilde. Demo, Florestan, Lauro e outros insignes educadores, em lugares onde a tecnologia contribuía para a humanização do ato de educar. No Brasil me reencontrei com a escola. Nela, a “educação do futuro” se faz presente. 

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QUEM É

José Pacheco é educador, antropólogo, especialista em Leitura e Escrita, Master of Science (MSc) em Ciência da Educação pela Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto. Idealizador da Escola da Ponte, em Portugal – uma das experiências em educação mais inovadoras do mundo - é autor de inúmeros livros e artigos sobre o tema, onde critica o modelo tradicional de ensino e aprendizagem. Indutor de mais de 100 projetos para uma nova educação no Brasil, atua hoje na EcoHabitare Consultoria e Projetos Educacionais como coordenador pedagógico dos Projetos de Formação.