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Paulo Sales
Publicado em 31 de agosto de 2020 às 05:00
- Atualizado há um ano
Saboreio lentamente Onde Encontrar a Sabedoria?, livro de ensaios do crítico literário norte-americano Harold Bloom. Um instigante conjunto de reflexões sobre a alta cultura e sua capacidade de nos colocar diante do mais alto grau de sapiência que a espécie humana produziu. Com sua erudição prodigiosa, Bloom disseca obras criadas por gênios da estatura de Proust, Homero, Platão, Cervantes, Shakespeare e Nietzsche, bem como peças clássicas do universo judaico-cristão: O Livro de Jó e o Eclesiastes.
A leitura de trechos do Eclesiastes pinçados por Bloom provoca momentos de epifania até em um reles ateu que viu milagres como eu: “Há homens que deixam atrás de si um nome, para que seus feitos sejam relatados. E há os que não deixam memória, que morrem como se jamais tivessem existido; e parece que sequer nasceram, e o mesmo ocorre com a sua prole”. Ou: “Que proveito tem o homem de todo o trabalho que realiza sob o sol? Uma geração vai e outra geração vem: mas a terra para sempre permanece. O sol também se levanta e o sol se põe, e apressa-se a voltar ao lugar onde nasceu. (…) Todos os rios correm para o mar; contudo o mar não se enche; ao lugar de onde vêm os rios, para ali tornam eles a correr.”
Embora escritas há tanto tempo, essas palavras permaneceram íntegras. “Se cortarmos as palavras elas sangram; são vasculares e vivas”, escreveu Emerson a respeito de Montaigne, relembra Bloom em seu livro. Essa frase poderia perfeitamente ser aplicada ao Eclesiastes. Sua clareza de propósito e sua pureza de espírito possibilitam a sua perenidade. Há, na Bíblia, outros momentos de deslumbramento, como o Apocalipse e o próprio Livro de Jó. Ou mesmo a história de Jonas, o peixe gigante e a cidade mesopotâmica de Nínive, que curiosamente dá nome a minha filha.
Devemos muito, enquanto civilização, às religiões ancestrais católica, judaica e islâmica. E não me refiro apenas à beleza feita de palavras, mas também àquelas que nascem da música e da arquitetura. Quase toda a obra de Bach é um assombroso ato de louvor a Deus. E há as igrejas, mesquitas e sinagogas, velhíssimas, que carregam parte da história do mundo. Existe, por outro lado, o legado de dominação e perseguição: Cruzadas, diásporas, etnocídios. As religiões reproduzem em sua essência a história do homem sobre a Terra: sangue sobre sangue, extermínio dos mais fracos, o indivíduo reduzido a pó diante da grande História.
Talvez por esse legado, não sinto a menor falta de religião em meu cotidiano. Desde criança, não via o menor sentido nas missas intermináveis a que ia com minha mãe. Quase nunca rezei, e quando o fiz foi sem sinceridade. A única vez em que me confessei revelou-se um martírio sem sentido. E o corpo de Cristo, materializado na hóstia, me provocava apenas o incômodo da massa colada ao céu da boca. A partir dos 14 anos, com a morte de uma prima, vítima de tumor no cérebro, me dei conta de que todas as novenas, terços e promessas feitos por minha família foram gritos no vazio.
Abandonei em definitivo o hábito de frequentar igrejas, a não ser como fruição estética. Afinal, elas são sublimes: da Notre-Dame ao Bonfim, passando pela Sagrada Família e a Capela Sistina, nos deparamos com algo profundamente sagrado. Mas não me refiro a alguma espécie de ser celestial. Falo da enorme – e subaproveitada – capacidade que possui o ser humano de alcançar a transcendência através da beleza. Erguemos a Acrópole, erguemos o Panteão, erguemos até Machu Picchu. Se não fôssemos estúpidos, seríamos deuses.