Quatro funcionários são suspeitos de conivência com João de Deus

Justiça de Goiás decreta a prisão preventiva do médium por suspeitas de crimes sexuais

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  • Da Redação

Publicado em 15 de dezembro de 2018 às 05:58

- Atualizado há um ano

. Crédito: EVARISTO SA/AFP

As mulheres ouvidas pelo Ministério Público de Goiás afirmaram que alguns funcionários do médium João de Deus eram coniventes com os abusos sexuais cometidos durante as sessões espirituais em Abadiânia (GO). Segundo as promotoras responsáveis, as vítimas apontaram quatro funcionários, cujos nomes se repetem nos depoimentos. O fato será apurado.

Uma das denunciantes ouvidas pelo jornal O Estado de S. Paulo relatou que seus avós faziam parte da linha de frente dos trabalhos espirituais. O médium a deixava por último na fila de espera para atendimento. “Na hora em que eu entrava, tirava minha blusa e muitas vezes meu sutiã e pegava nos meus seios. Eu chorava, mas ele nunca teve piedade”, relatou. E disse que os abusos são conhecidos em Abadiânia. “As pessoas que trabalham há muitos anos lá sabem o que ele faz”, diz. 

A força-tarefa instituída pelo MP de Goiás recebeu desde o dia 10, quando foi criado o e-mail para recebimento de denúncias, um total de 330 mensagens e contatos. O e-mail específico para essa finalidade é o [email protected]. Os atendimentos são de denunciantes de Goiás, Distrito Federal, Minas, São Paulo, Paraná, Rio, Pernambuco, Espírito Santo, Rio Grande do Sul, Mato Grosso do Sul, Pará e também Santa Catarina.

O coordenador do Centro de Apoio Operacional Criminal do MP, Luciano Miranda Meireles, disse estar impressionado com o relato das vítimas, sobretudo pelas semelhanças e riquezas de detalhes, e afirmou não ter dúvida de que, uma vez formalizadas as denúncias, o caso João de Deus tem potencial para superar o do ex-médico Roger Abdelmassih, condenado por abusar de suas pacientes.

Prisão decretada  A Justiça de Goiás decretou a prisão preventiva de João de Deus. Ele se diz inocente e sua defesa informou que vai apresentar um habeas corpus para reverter a decisão. Ao mesmo tempo, não descarta que se entregue.

“Se ele não se apresentar até o fim da noite (de ontem), será considerado foragido”, afirmou o delegado-geral da Polícia Civil de Goiás, André Fernandes. Durante toda a tarde, policiais fizeram buscas para localizar o médium. Desde quarta-feira, quando apareceu na Casa Dom Inácio de Loyola, ele só fez um pronunciamento de poucos minutos para declarar sua inocência, e não foi mais visto. 

A informação de funcionários mais próximos é de que está hospedado no sítio de um amigo. Ontem, policiais estiveram em mais de 20 endereços à procura do médium.

O pedido de prisão preventiva foi apresentado pelo Ministério Público anteontem. A justificativa para a solicitação era de que, solto, o médium poderia ameaçar mulheres que dizem ter sido abusadas sexualmente ou, ainda, fazer novas vítimas. 

Até ontem, o Ministério Público já havia reunido 335 depoimentos vindos de pessoas de 14 estados brasileiros e de seis países.

Além do MP, a Polícia Civil recebe depoimentos de supostas vítimas. Somente na cidade de Abadiânia, três inquéritos foram abertos nos últimos dias. Antes de as vítimas virem a público denunciar o médium, a Polícia Civil informou de pelo menos três casos abertos, um de 2016 e dois deste ano. 

Alguns casos foram arquivados por falta de provas. A recomendação é de que, agora, eles sejam reabertos. Pelas contas da Promotoria, se comprovadas as denúncias, João de Deus pode ter uma sentença superior a 150 anos de prisão. Os relatos indicam três crimes: estupro, estupro de vulnerável e violação sexual mediante fraude.

Defesa O advogado de João de Deus, Alberto Zacharias Toron, disse ter visto somente no fim da tarde de ontem a decisão da Justiça. Ele ponderou que ali constavam poucos relatos, todos sem indicar os nomes das supostas vítimas. A ideia da defesa era apresentar habeas corpus contra a decisão. Sem, no entanto, descartar a possibilidade de o médium se entregar. Toron disse estar preocupado com a segurança do cliente. Não é incomum, lembrou Toron, suspeitos de cometer crimes sexuais serem agredidos por outros detentos.

‘Nós não vamos fechar’, promete auxiliar

A notícia da decretação da prisão preventiva de João de Deus abalou a cidade de Abadiânia, a 113 quilômetros de Brasília. Na Casa Dom Inácio de Loyola, onde João de Deus faz os atendimentos a cerca de três mil fiéis por semana, o maior receio ontem era de que o local venha a fechar as suas portas.

Um dos funcionários mais próximos de João de Deus, Francisco Lobo, afirmou ter recebido ligações de fiéis com dúvidas sobre como será o funcionamento do centro. “Nós não vamos fechar. Aqui é uma casa religiosa”, ressaltou Lobo.  

Nesta semana, a primeira depois que vieram a público as denúncias de abuso sexual contra João de Deus, o movimento da Dom Inácio caiu de forma expressiva. Lobo atribuiu parte da redução do movimento à proximidade das festas de fim de ano. “Claro, quem nunca veio até aqui pode ter adiado. Mas quem conhece a casa não se abalou”, acredita ele.

O movimento das pousadas também diminuiu. Uma gerente, que não quis ter seu nome publicado, afirmou que o prejuízo nos últimos três dias foi de R$ 10 mil. O turismo religioso exerce papel importante na economia de Abadiânia, de 17 mil habitantes. A estimativa é de que a Casa Dom Inácio de Loyola gere 1,3 mil empregos diretos e indiretos.

Após a divulgação das acusações, a editora Companhia das Letras suspendeu a distribuição do livro João de Deus: Um Médium no Coração do Brasil, publicado em 2016. Já a distribuidora Paris Filmes cancelou a comercialização de um documentário sobre o médium.

Filha diz que foi abusada dos 10 aos 14 anos de idade

Dalva Teixeira,  49 anos, filha de João de Deus, afirmou em entrevista à revista Veja que foi abusada pelo pai pela primeira vez aos 10 anos. No relato, que será publicado na edição desta semana da revista, ela conta que, na ocasião, o pai a mandou ficar nua e passou o pênis por todo seu corpo. Os abusos aconteceram até seus 14 anos, quando ficou grávida de um funcionário de João e foi espancada pelo médium, a quem chama de “monstro”, por conta disso.

“Ele me levou para o quarto dele, tirou minha roupa toda e eu achei aquilo estranho. Aí eu perguntei: o que você está fazendo? E ele disse: o pai vai fazer um trabalho espiritual com você com Dom Inácio de Loyola, aí ele pegou, ficou pelado, se despiu todo e começou a passar o pênis dele no meu corpo todo”, lembrou. “Aí ele pegou e foi. Aí eu falei: ‘Ai, está me machucando’, e ele em cima de mim. E eu: ‘Está me sufocando’. Aí eu peguei e saí correndo”, relatou Dalva à revista.

A filha do médium revelou que os abusos aconteciam em casa, no carro, nos passeios que faziam em família e em quartos da residência de amigos.

Dalva também contou à revista que passou a viver com João de Deus somente aos 9 anos de idade. Até então, morava apenas com a mãe e sequer conhecia o pai.

Dalva disse que relutou em denunciar João de Deus por medo de prejudicar os filhos, que até hoje são sustentados pelo avô. Ela também afirmou que muitos advogados que procurou se recusaram a pegar a causa por receio de enfrentar o médium. Segundo ela, ele dizia para ser o próprio Deus. “Ele dizia que não existia Deus, que Deus era ele”, lembra. 

perguntas & respostas

Quem é João de Deus?   João Teixeira de Faria, o João de Deus, é um médium de 76 anos. Na Casa Dom Inácio de Loyola, em Abadiânia (GO), ele realiza atendimentos em que supostamente oferece cura espiritual. Os tratamentos envolvem passes (transferência de energia com as mãos), cápsulas de passiflora, vendidas em uma farmácia própria, e cirurgias espirituais, que podem envolver cortes caso seja solicitado pelo fiel.  Ele já recebeu, em Abadiânia, pessoas como a apresentadora americana Oprah Winfrey, o ex-jogador Ronaldo Nazário e a artista plástica Marina Abramovic. O presidente Michel Temer (MDB) recebeu um passe do médium na véspera da delação de Joesley Batista. 

O que se sabe até agora?    

Os primeiros relatos de assédio foram revelados pelo jornal O Globo e pelo programa Conversa com Bial, da TV Globo. Nos últimos dias, dezenas de  mulheres relataram terem sido abusadas sexualmente pelo médium. Ao menos sete  mulheres já tinham formalizado queixas contra João de Deus na Polícia Civil de Goiás. 

Por quais crimes o médium pode ser acusado?    

Algumas possibilidades são estupro, estupro de vulnerável, violação sexual mediante fraude ou importunação sexual. 

Desde quando há denúncias contra ele?  

De acordo com o delegado-geral da Polícia Civil de Goiás, uma denúncia recebida há 45 dias já estava sendo apurada. Já o Ministério Público de Goiás afirmou que já havia investigações abertas ao menos desde junho deste ano, e há denúncias desde 2010. Além disso, João de Deus já foi alvo de dois processos judiciais com conotações sexuais. Um foi arquivado por falta de provas e, no outro, de 2012, ele foi considerado inocente. Ele também já foi acusado de sedução de menor e atentado ao pudor em um caso envolvendo uma adolescente de 16 anos, mas o processo foi extinto por falta de provas.  Em 1985, foi preso por contrabando de minério. Nos anos 1970, chegou a ser preso por charlatanismo e foi alvo de denúncias do Conselho Regional de Medicina de Goiás por prática ilegal da Medicina. 

Há relatos de casos da década de 1980. Os crimes supostamente cometidos podem prescrever?   

O tempo de prescrição varia de acordo com a pena e o tipo de crime. O tempo máximo é de 20 anos, para crimes cuja pena máxima é superior a 12 anos. É o caso de estupro de vulnerável (menores de 14 anos), que prevê reclusão de 8 a 15 anos.