Quem é Mariano: o nativo acusado de invadir área de preservação no Vale do Capão

Casado com policial civil, ele vive em única residência dentro de Parque Municipal

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  • Fernanda Santana

Publicado em 1 de setembro de 2019 às 06:06

- Atualizado há um ano

. Crédito: Ilustração de Morgana Miranda

José Mariano fala pouco. Foi criado numa casa nos Campos, vilarejo na subida para a Cachoeira da Fumaça, na companhia dos pais e nove irmãos. Todos sobreviviam do que o pai, Pedro, retirava da terra. Depois de completar 20 anos, foi indicado como caseiro da primeira grande construção do Vale do Capão, distrito de Palmeiras, na Chapada Diamantina. É quando a história de Mariano, hoje citado como invasor de terra e acusado em outros casos de agressão, começa a mudar.

José Mariano Batista de Souza está envolvido na considerada maior disputa da história do Vale do Capão, na Chapada Diamantina. Lá, cerca, loteia a área e ameaça a vizinhança para provar que a terra lhe pertence. Os vizinhos respondem com processos e queixas na polícia.

A família de Mariano, 48, é conhecida como os Pirocas. O pai foi quem primeiro levou o apelido de Piroca, ligado, no tupi-guarani, a algo próprio da terra. No primeiro trabalho como caseiro, em 1995, iniciou hábitos que o levariam a uma má fama no Vale.“Ele é irritado. Ninguém quer nem falar, tem medo”, diz um nativo, sob anonimato.O patrão ia ao Capão apenas para veranear. Como estavam isolados, Mariano começou a relatar invasões que nunca se provaram verdadeiras. De lá, seria demitido em 2006, quando a casa é vendida. A reportagem ouviu pelo menos 15 nativos que estão certos de que a saída foi provocada por Mariano.“Ele gostava de perturbar, as pessoas que saíram de lá não querem ouvir falar nunca mais do Capão”, conta outra fonte, novamente sob anonimato.  O endereço fixo era nos Campos, onde casou com outra nativa, com quem teve um filho. Uma agressão de Mariano contra a ex-companheira acabou, neste ano, na Vara Criminal de Iraraquara. O juiz atestou indícios de violência, que incluíram ameaças de morte na presença do filho. 

Entenda: Nativo cerca área pública e ameaça vizinhança no Vale do Capão

A agressividade relacionada à terra já havia se tornado questão de polícia. Já era, à época, acusado de invadir o terreno, provocar incêndios e fazer desvio de água. Depois da separação, engatou namoro com Leila. A policial se aposentou por invalidez neste ano, depois de quatro anos afastada da Delegacia de Lençóis por "motivos de saúde". Ela também responde, na Corregedoria da Polícia Civil, por acusações relacionadas a ameaça. 

Os dois vivem, desde 2016, numa casa dentro do Parque Natural Municipal do Boqueirão - criado pela prefeitura de Palmeiras em maio de 2015. Nos dias movimentados das trilhas para Águas Claras, Morrão ou Lençóis, recebem turistas e guias num bar improvisado.

“A tática é ocupar o espaço para dizer que é dele”, diz outro morador. A prima, Adaílde, e o esposo paraibano, Afonso, também estão sempre juntos a Mariano. A nova geração dos Pirocas dizem ocupar regularmente a propriedade, que seria uma herança familiar.

Grilagem na Chapada A região é de completo silêncio. O Gerais do Morrão parece impedir qualquer som senão o canto dos pássaros, o ruído das águas do Riachinho e o sopro constante do vento. Pois bem ali, no aparente paraíso, dá-se a maior disputa da história do Vale do Capão, na Chapada Diamantina. 

A questão chegou à Prefeitura de Palmeiras em 2015, quando moradores começaram a relatar a ocupação na antiga terra devoluta, feita de pasto pelos nativos. A preocupação era a presença de um senhor identificado como José Mariano Batista de Souza na região e a especulação imobiliária no local. O decreto nº 224 transformou a área de 153 hectares, o equivalente a 150 campos de futebol, na unidade de preservação Parque Natural Municipal do Boqueirão.

O nativo, à época, já havia começado a cercar e lotear parte da terra. No Ministério Público da Bahia (MP-BA), quatro denúncias foram reunidas, em 2016, num único Inquérito Civil Público; na polícia, há seis boletins de ocorrência relacionados à ocupação do Parque e registros de ameaça ligados a Mariano. 

Durante um mês, o CORREIO ouviu pelo menos 20 moradores e nativos, advogados, corretores, policiais, promotor de Justiça e funcionários da Prefeitura de Palmeiras para desvendar os mistérios que enovelam desde a história da terra e de comunidades vizinhas até as recentes denúncias de grilagem.

A luta entre posse e preservação já resultou em queixas de agressão, ameaça de morte e crime ambiental. Uma casa a oeste do Parque do Boqueirão é um dos símbolos do litígio. É onde vivem Mariano e Leila.

Ocupação  A investida sobre a terra é acentuada em 2015. É o momento em que Mariano e a esposa, a policial civil aposentada Leila Tatiana Martins, ocupam para comprovar a posse. A servidora, inclusive, responde por procedimentos junto à Corregedoria da Polícia Civil, entre eles, sobre ameaça e abuso de poder. A informação foi confirmada pela instituição. 

A partir de 2010, os vizinhos já identificam cercas e os turistas recebem propostas de venda. Os principais alvos seriam justamente os visitantes no caminho para as trilhas de Lençóis, Morrão, Águas Claras, Barro Branco e Guiné.

Desde 2016, a Promotoria de Justiça Ambiental do Alto Paraguaçu, em Lençóis, trabalha no Inquérito. O nativo nunca apresentou documento que comprovasse a posse, confirmou o promotor Augusto César Matos, à frente do caso. Ele acredita se tratar do "maior problema de regularização fundiária e de tentativa de ocupação de toda a Chapada Diamantina". "A questão de disputa de ocupação de terra se dá pela especulação imobiliária, não é pela agricultura. Não há disputa para se plantar, o que é diferente de outras áreas. A disputa é ocasionada pelas segundas-moradia e a proposta de se viver", opina. Como não foi apresentada declaração, não há estimativa do tamanho da terra ocupada por Mariano, que é rodeada de cerca.

A região é limitada, à leste, pelo Parque Nacional da Chapada Diamantina. Num dos limites, há uma placa de Reserva Legal, chamada Sítio do Boqueirão. O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) checou as informações sobre o imóvel e disse que as dimensões da área estão desatualizadas, pois "parte teria sido vendida". A desatualização, afirmou o órgão, impede gerar informações sobre o espaço. Velha placa dentro de limites que depois virou Parque instituído, em 2015, pela Prefeitura de Palmeiras: tentativa de preservar área (Foto: Divulgação) No dia 6 de junho, no coreto da Vila do Capão, promotor, representantes da Prefeitura de Palmeiras, cidade à qual pertence o distrito, e moradores discutiram a questão. Foi divulgado o Termo de Ajustamento de Condutas (TAC).

Afinal, em fevereiro de 2017, Adaílde Neves, prima de Mariano, e seu marido, Afonso Timóteo, moveram processo na Vara de Iraquara, município na Chapada Diamantina, para questionar o decreto do Parque Municipal. Os dois foram identificados pela reportagem como parceiros de Mariano na empreitada pela terra.  

O decreto não só foi mantido pela Justiça, como a Prefeitura ficou obrigada a, em até seis meses, desocupar “posseiros e grileiros”, como consta no TAC a que teve acesso a publicação. Na última movimentação do processo, ficou determinado que o casal deveria apresentar documentos que jusitficasse a anulação. 

A responsabilidade de administração do parque é da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Econômico e Sustentável. “Agora, a gente vai iniciar o que ficou acertado no termo. Já começamos a questão da regularização fundiária”, explica o secretário, Jenivaldo Vieira dos Santos. 

No caso de Mariano, seria impossível afirmar a usucapião, quando alguém adquire a posse da terra a partir do uso num prazo de 10 ou 15 anos. Nunca foi apresentado um documento. E mesmo que houvesse, não seria possível ocupar uma terra pública como o Parque do Boqueirão. “A pessoa pode conseguir provar que adquiriu a terra antes do decreto. Mesmo se isso for reconhecido e declarado, o máximo que se pode pleitear é uma indenização”, explica Bernardo Romano, advogado e presidente do Instituto Baiano de Direito Imobiliário.Ainda assim, seria preciso comprovar o uso da terra, com depoimento de vizinhos e apresentação de documentações, o que também não aconteceu. 

A terra das denúncias  A residência do casal é a única dentro do Parque Municipal. Os vilarejos de Campina e Campos são vizinhos. Desde 2015, carros da Companhia Independente de Polícia de Proteção Ambiental (Cippa) e da prefeitura circulam pela região para averiguar os relatos de feitos em ligações anônimas. Os moradores, em sua maioria, pedem para não ter os nomes divulgados.   

O método para anunciar lotes de terra consiste em abaixar o preço. “Digamos que uma terra que seria vendida por R$ 100 mil, ele vende por R$ 30 mil. São pessoas que vêm de fora e compram a preço de banana”, afirma um nativo. A área é vizinha à maior nascente do Riachinho, que está numa Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN). Dentro do Parque, brotam outros afluentes que drenam o rio. 

Duas imobiliárias do Vale disseram não fazer negócio na região. No povoado dos Campos, vizinho ao Parque, a reportagem encontrou um terreno de dois hectares por R$ 135 mil.

O Serviço de Inteligência da Cippa chegou a identificar as cercas e os anúncios na região, mas não conseguiu ir adiante no cruzamento de informações. A Prefeitura também identificou os cercados, mas só retirará o material quando a regulamentação fundiária for finalizada. O prazo é de um ano. 

Em abril de 2015, Mariano foi ao Cartório de Títulos e Documentos de Palmeiras doar 56 hectares de terra dentro do parque para Adaílde. A doação aconteceu menos de um mês antes das terras serem transformadas numa área de preservação. Na declaração, disseram se tratar de uma herança da ”falecida mãe” de Mariano, chamada Maria da Rocha. A mãe, no entanto, segue viva, responde por Clarinda e ainda reside nos Campos. 

No repasse, Mariano apresentou um contrato datado de 2000 e declarou o tamanho da terra em 25 hectares. Em maio de 2018, Adaílde foi ao cartório realizar uma certidão de uso e posse. Dessa vez, a declaração foi de 56 hectares, um terço do tamanho total do Parque.

O advogado Alexandro de Souza, que representa Mariano, afirmou que a doação aconteceu por razões familiares. Depois de Adaílde retornar de São Paulo ao Capão, "ele [Mariano] se compadeceu da prima, que chegou e não tinha nada. Ele doou parte da terra para ela".

A reportagem questionou a diferença entre as metragens, o que é justificado como um erro na conversão das medidas. Primeiro, a terra é avaliada em tarefas; depois, em hectares. Ainda assim, permanece a diferença, já que a terra havia sido avaliado em 70 tarefas, o mesmo que 25 hectares.

Sobre a "falecida mãe", o advogado atribui a um possível erro. “Não sei se foi erro da pessoa que fez o documento na época. Quem morreu foi o pai dele. Não sei se houve algum erro formal aí no documento”. 

O advogado diz acreditar que a questão tem a ver com um "apartheid" criado no Capão a partir da chegada de turistas ao distrito. ”Por trás dessa ideia de parque, na verdade está sentimento privado, vingança privada”, afirma. 

A reportagem perguntou se era possível conversar diretamente com Mariano. Inicialmente, o advogado respondeu que o cliente não tinha celular. Na sexta-feira (30), comprometeu-se a agendar uma data para entrevista.

O Cartório de Registro de Imóveis e Hipotecas, Títulos e Documentos da comarca de Palmeiras foi procurado pelo CORREIO, mas não atendeu à solicitação da reportagem, que pediu acesso ao documento.  

*Com supervisão da editora Mariana Rios