Quer segurança? Então pense comigo.

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  • Da Redação

Publicado em 13 de agosto de 2022 às 11:00

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Qualquer pessoa sabe que as polícias têm a função de proteger pessoas e patrimônios contra crimes cometidos por outras pessoas. Que é um instrumento de investigação, contenção e repressão. Então, são necessários poucos raciocínios para concluir que, se um país precisa de muita polícia, é porque é perigosíssimo. Aí, basta continuar pensando: a presença da polícia - por melhor que seja - está longe de transformar um lugar "perigoso" em "tranquilo". Ainda que seja necessária e mesmo que trabalhe direito, não é solução definitiva.

O policiamento ostensivo pode represar a violência urbana, mas não tem como resolver. Não há uma "atmosfera de paz" se homens e mulheres armados precisam estar vigilantes e atentos a qualquer potencial ameaça. Eu, pelo menos, tenho medo de lugares policiadíssimos, justamente porque, se eles estão ali, mesmo para me proteger, há possibilidade de conflito que pode muito bem sobrar pra mim. Tô considerando, claro, os casos em que a polícia trabalha certo. Nas situações em que policiais agem como bandidos, eles também são bandidos e mudam de lugar no problema que tratamos aqui.

Você sabe que, não sem razão, há uma onda de pedidos por "segurança" para Salvador. Absolutamente legítima e necessária. Só que a população usa a palavra policiamento como sinônimo de segurança plena. Policiamento é parte de um conjunto de ações sem as quais "policiamento" será sempre insuficiente, por melhor que seja a polícia. Em outras palavras, não existe uma maneira eficaz de enxugar gelo. A polícia não funciona se trabalhar sozinha.

Quer segurança? Então pense comigo. Há muitas pessoas que, mesmo submetidas a situações de privações, misérias e violências, permanecem "boas", digamos. Capazes de convivência pacífica e até de belíssimas atuações no coletivo. Há inúmeros exemplos disso, vários conhecidíssimos. Por outro lado, também tem muita gente que, mesmo nascendo e vivendo imersa no ambiente social mais favorável, não vira coisa que preste. Tem gente certa e bandido de todo tipo, os dois cenários são comuníssimos.

Só que há a terceira e mais corriqueira situação que é o indivíduo ser profundamente afetado e se tornar parte das suas circunstâncias. Aí eu lhe digo que não estaria, aqui, pensando em paz e amor, se eu e a minha família estivéssemos no mapa da fome. Por exemplo. Ou se não tivesse vivido uma infância com todas as oportunidades que alguém precisa para crescer saudável e feliz. Não tenho uma natureza tão pacífica assim.

Aí, você espera "paz" num país onde comer voltou a ser privilégio? Onde há riquíssimos e paupérrimos coabitando cidades? Onde a desigualdade social é aviltante? E acha que só meter muita polícia resolve? É sério isso? Santa ingenuidade, Batman. Com esse contexto, a paz não existe em lugar nenhum do mundo. Pode pesquisar os índices de violência e cruzar com indicadores sociais. Vá lá e volte pra continuar pensando.

Violência se combate de barriga cheia. Também com lápis de cor, moradia, água encanada, roupas, sapatos, livros, emprego, salário digno. Pra querer viver bem, a gente tem que gostar de viver. Pra respeitar vidas, é preciso que se tenha uma vida. Dito assim, no país em que vivemos, parece tão bobo, né? Eu sei. Mas nunca tirei da cabeça a sensação de passear por ruas onde policiais andam desarmados, sem medo NENHUM de ser assaltada. Você já viveu esse sonho de não ter medo da violência urbana? Eu já. Fora do país.

(Mesmo na Salvador de outrora, já dormi na Estação da Lapa. Eu era muito jovem, perdi o último ônibus e não tinha dinheiro pra taxi. Ninguém tocou em mim.)

Tem que cuidar das pessoas. Inclusive dos policiais. Aí, se você acha que só identificar, prender e punir resolve, boa sorte. Mas, provavelmente, nunca escutou um garoto lhe dizer que "cadeia é pra homem, né pra bicho, não", rindo. Assim, como quem acha a coisa mais natural viver preso. Nem a morte assusta e uma das dificuldades que eu tive, trabalhando com adolescentes vulneráveis - alguns já vinculados ao tráfico - foi explicar que, com 25 anos, a pessoa não tá velha. Porque eles morrem tão antes que fazer 40, por exemplo, é algo impensável. Não há como causar medo em quem não tem o que perder.

Por que "os bandidos" deveriam valorizar a sua vida? Ou a minha? Grandes merdas lhes parecemos todos nós. Como respeitar no outro a humanidade que não percebem neles mesmos? Pretender isso, sim, é bobo e infantil. Você gostando ou não, o caminho - testado e aprovado em muitos lugares do mundo - é cuidar de gente. Só isso, entre todas as possibilidades, funcionou. Cuidar de gente. Inclusive dentro dos presídios.

Tô defendendo bandido? Não, pelo contrário. Todo dia agradeço por não lidar com criminoso algum. O ódio que eu tenho de feminicida, por exemplo, era capaz de me colocar atrás das grandes junto com eles, caso alguém me deixasse armada, numa sala, interrogando uma desgraça dessa. Melhor evitar o ato que, eu sei, seria tão criminoso quanto o do criminoso que me desperta ódio. Então, não tô defendendo bandido. Tô tentando defender a mim mesma, no fim das contas. E aos meus. Só que eu não sou burra.

Bora fechar com a questão dos presídios? Pra você entender, por fim, que tem que cuidar de gente. Outro dia, eu assisti um documentário sobre a prisão de Halden, na Noruega, conhecida como "a prisão mais humanizada do mundo". Um luxo. Eu moraria lá, se pudesse entrar e sair. Melhor do que muito hotel onde você já se hospedou achando chique. Pois bem.

Halden é criticada por ser "branda" demais. Nem grade tem lá. O presidiário é recebido com aperto de mão e sorrisos. Os agentes penitenciários desarmados. Chovem críticas e eles nem aí. A ideia é reabilitação e não punição, pois consideram que a privação de liberdade já é punição suficiente. Então, o foco é não devolver violência para as ruas, cuidar do coletivo que eles não são otários. Por isso, o condenado entra lá e é abordado de tudo que é jeito pra se recuperar.

Resultado? A "prisão mais humanizada do mundo" é também a que tem a menor taxa de reincidência no planeta: 20%. Em outros países, de sistema prisional mais tradicional, como o Reino Unido, essa taxa chega a 46% e, nos EUA, a 76%. No Brasil, eu não achei esse número. Mas eu aposto nuns 200%. Ou mais. Donde se conclui que o "medo de ser preso" não resolve quase nada, por pior que seja o presídio. Sobra o quê? Se a gente quiser andar em paz, não tem jeito. É começar a cuidar de gente. A sério. Pra valer.