'Queremos continuar vivendo uma vidinha ordinária', diz antropólogo

Antropólogo reflete sobre não abrir mão de privilégios, responsabilidades coletivas e as complexidades das escolhas; leia entrevista

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  • Fernanda Santana

Publicado em 4 de abril de 2021 às 11:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Acervo Pessoal

Há poucos dias, o antropólogo Jean Segata precisou ir ao mercado e, enquanto conversava com uma funcionária, ela chorou. Idosa, a senhora teria que começar a pegar um trem lotado, em Porto Alegre, para chegar em casa, a 60 quilômetros de distância do trabalho. Estava com muito medo de adoecer. "As pessoas não enchem a linha do trem voluntariamente, porque querem. É importante entender a complexidade. Muita gente sabe que está exposta, mas é obrigada a gerir o risco", diz ele, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul."A qualificação moral entre trabalho e lazer esconde o fato de que não deveríamos trabalhar em situações insalubres. Muita gente vive no limite, a gente vem morrendo aos poucos. Não justifica [quem trabalha em serviços essenciais e se expõe a condições insalubres de trabalho] fazer festa, aglomerar, mas não dá para achar totalmente incompreensível". Jean Segata coordena, hoje, a Rede Covid-19 Humanidades MCTI, que produz pesquisas que analisam o impacto da covid-19 entre os profissionais de saúde e grupos vulneráveis em situação de isolamento social, em parceria com a Fiocruz e seis universidades públicas, financiadas pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações.

Ele conversou com o CORREIO sobre os impactos sociais da pandemia, sobre "a morte comprida" que vivemos há décadas, como as responsabilidades individuais impactam coletivo e de que forma a conversão de alguns serviços em "essenciais" tenta resguardar os privilégios dos mais ricos e escancara o racismo estrutural. 

Na maioria das vezes, Segata costuma dizer que "a gente já vive uma pandemia há décadas, o vírus é que chegou atrasado", e, nesta entrevista, mostra como chegamos até aqui e o que teremos de repensar, se não quisermos "morrer dessa morte comprida da autodestruição". Confira na íntegra: 

O que essa pandemia denuncia da nossa forma de viver?

Respondo essa questão a partir de uma certa trajetória de pesquisa. A gente vive uma forma destrutiva. O que estamos vivendo hoje é sintoma de uma tragédia muito maior em curso, que tem a ver com o modo com que as relações humanas têm alterado o curso da vida no planeta. Não tem como dar certo quando a gente transforma um país como o Brasil em uma fazenda de gado em confinamento. Não tem como dar certo quando a gente transforma tudo em lavoura de soja transgênica. É sempre esse desequilíbrio ambiental, que já traz outras consequências, como o aquecimento do planeta.

A emergência desses novos patógenos tem a ver com o desequilibro dos ambientes. Então, não há dúvidas de que essa pandemia é mais uma das marcas do que chamamos de antropoceno, de uma catástrofe em curso.

Mas a gente age como se nunca esperássemos a catástrofe, né?

Uma das coisas que eu tenho insistido é o quanto as políticas que costumam anunciar que há um perigo eminente protegem os ameaçadores. Falo isso pensando muito nos protocolos de biossegurança, algo que tenho estudado. Uma das questões muito interessantes é: a biossegurança é um conjunto de protocolos que dizia respeito a segurança no laboratório. Aos poucos, essa ideia foi vazando dos laboratórios e virando uma espécie de política internacional. Ou seja, os controles de fronteira, a ideia de que certos migrantes podem ser potencialmente contaminantes ou perigosos, ou que eles podem vir de um país contaminado, ou que podem ter comido uma sopa de morcego e trazer uma cepa de vírus, como dizem essas narrativas exotizantes. O tema da saúde, que deveria ser pensado pelo cuidado, virou um tema de segurança. Epidemias são vistas do ponto de vista de ameaça, da segurança. A gente sabe que vai acontecer a catástrofe, a gente só não sabe quando. Esse imaginário vai ganhando forma nas últimas duas décadas e, em uma certa medida, até se confunde com aquele imaginário de produtores de séries, que trazem calamidades, catástrofes iminentes que acabam com a humanidade. Mas, a quem interessa formar esse imaginário?Quando olhamos para o Brasil, vivemos um colapso na saúde, mas ainda temos uma assistência pública de saúde. Quando a gente pega um país como os Estados Unidos, que não tem saúde publica, o que a gente escuta de pessoas que contraíram [o coronavírus]? Fica em casa, espera ficar bem ou morrer, porque se você for para o hospital, vai sair com uma dívida gigantesca.Esse discurso da catástrofe iminente tem favorecido, por exemplo, a indústria dos seguros. Nos EUA, o seguro de vida é vendido muito nesse sentido: “olha, você nunca sabe o que vai acontecer amanhã”. Então, surge uma privatização da segurança, que encapsula outros temas, como a saúde. Particularmente, tem o projeto que estou coordenando sobre contaminação em frigoríficos do Rio Grande do Sul. A história da carne tem a ver com a pandemia. A gente esquece de olhar que a mega indústria da carne, que segue o tal dos protocolos, é altamente contaminante, com mão de obra precária.

De um lado, você tem protocolos de segurança que o tempo todo dão uma ideia de que tudo está sob controle, e realmente temos tecnologias para isso, mas elas não capturam os ônibus lotados que levam esses trabalhadores, não capturam a falta d’água, não capturam as empregadas domésticas.Ao mesmo tempo que se vende a ideia de que sabemos o que vai acontecer, se vendem produtos em torno disso. Quando a pandemia efetivamente aparece, vemos o quanto estávamos mal preparados. 

Você é um crítico da ideia do “novo normal” que normaliza situações absurdas como essa. Quase um ano depois de pandemia, que normal é esse? 

Você viu que a gente bateu mais de dois mil mortos hoje, né? Não tem como levar a sério uma normalidade vivendo esse tipo de quadro. Não tem como não fazer a piada: "o mercado se incomodou com a anulação das sentenças de Lula, mas não se incomoda com mais de dois mil mortos por dia?". O novo normal é para um tipo de modelo de mundo que transforma parte da população em custo e traz um discurso de “bom, se morrer, era um custo, mas temos que continuar trabalhando”. Fico muito assustado quando se comenta essa ideia. Não tem como a gente aceitar qualquer ideia de normalidade. Mas, uma coisa que facilita esse tipo de ideia é o tipo de vida que levamos no Brasil.A bem da verdade a gente já vive uma pandemia há décadas, o vírus é que chegou atrasado. A pandemia está aqui há 500 anos, com destruição, extrativismo desregrado, genocídio. A gente vive uma crise constante nesse país. Parece que o modelo que a gente corporificou é de um estado sempre tenso. Hoje, a crise se torna aguda com a chegada de um vírus, mas a situação de catástrofe em curso é antiga.Um dia desses, eu estava conversando com um colega que está pesquisando covid nas favelas e ele me dizia o seguinte: “Eu fico tão assustado quando alguém espirra perto de mim”. Daqui a pouco, ele vem assim: “nossa, tem tiroteio todo dia aqui”. Então, você se assusta mais com espirro do que com um tiroteio? Isso porque alguma coisa não está certa. Não digo que as pessoas não se importam, mas que vivem num exercício constante de resignação, de tocar a vida no meio do caos, às vezes com períodos melhores, as vezes piores.   Um dos pontos que você está investigando são os impactos sociais da pandemia. No que diz respeito ao trabalho, você enxerga alguma ressignificação? 

Tem várias questões importantes de pensar. Lembro logo no início da pandemia, quando se começou a ideia de fazer um isolamento, houve uma certa tensão entre Mandetta [Henrique Mandetta, ex-ministro da saúde] e Guedes [Paulo Guedes, ministro da Economia], que dizia que o isolamento atrapalhava a economia. Na verdade, é uma economia ruim que mata as pessoas, não o contrário. Não podemos ter o tempo de ficar em casa, com relações de trabalho garantidas. A gente vem, não é agora, precarizando o trabalho. Uma das linhas de frente da pesquisa que tocamos são os entregadores. Eles são MEI [Microempreendedores individuais], né? Essa ideia de ser dono de si é vendida como algo bom. Pois é, sem garantia, pedalando 15 horas por dia, sentindo o cheiro da comida que entregam, mas sem poder comer. Estão em exposição, têm contato com as pessoas... A pesquisa ajudou a gente entender outras coisas. Quando a gente falava de cuidados com eles, como máscara, e perguntávamos se eles tinham preocupação de se contaminar, eles falavam: “você já andou de bicicleta aqui em Porto Alegre? A gente lida com a morte todo dia”. Sabe o que é se cuidar para essas pessoas? O vírus é só mais uma morte para essas pessoas. A gente começou a perceber que o vírus também expos ainda mais as entranhas do que é o universo do trabalho no Brasil. Se a pandemia produz uma morte iminente, as situações de trabalho no Brasil, hoje, produzem uma morte comprida. O lugar da casa virou um lugar de trabalho também, o que mostra como as coisas têm piorado, e digo isso reconhecendo que eu sou pessoa muito privilegiada, de não precisar ficar exposto. Daí eu vejo que a homeofficização tenda a tornar a rua ainda mais hóstil do que já é hoje. Agora, trazer o trabalho para dentro de casa é mais um desses sinais que o novo normal tende a ser mais nocivo do que o que nos conhecíamos. 

Mesmo no pior da pandemia, algumas dessas relações de trabalho são retomadas agora - por exemplo, com as diaristas voltando para casa dos patrões. Por que você acha que a falsa normalidade é retomada por alguns grupos agora?  

Eu fico bem incomodado. Além dessa situação, vejo outras: um movimento que eu tenho acompanhado de perto é a reinvindicação de pais e mães pedindo a volta das escolas na escola das minhas filhas. Qual é lógica desse tipo de situação, senão por perversidade, no fim das contas? Mas, por outro lado, têm algumas situações complexas, de como as pessoas corporificam a precariedade, no sentido de pedir para trabalhar. Nos frigoríficos que tenho acompanhado, os trabalhadores se manifestam para continuar trabalhando, incorporaram esse espírito do símbolo do trabalho. Não sei nem como escrever sobre isso, porque chega a ser uma ofensa a algumas lutas trabalhistas. Não digo, por exemplo, que é o mesmo caso das empregadas domésticas, mas também pode haver essa corporificação. Eu sinto que muitos desses trabalhadores são coagidos. Quando veio o fechamento do comércio, de novo, eu conversei com o cara que tira minha temperatura, quando entro pelo shopping para chegar ao supermercado. Esse senhor, enquanto eu conversava com ele, agradecia, dava graças a deus, por trabalhar na portaria do supermercado, porque continuaria trabalhando [com o fechamento temporário do shopping]. Os outros seriam dispensados. O cara dava "graças a deus" que, num momento grave, ele continuaria trabalhando. É muito coercitiva a ideia de que você vai ficar sem grana.

Às vezes vejo a situação de uma pessoa: “Ah, um dia desses chamei a pessoa tal para limpar minha casa, e ela não podia. Pois agora não trabalho mais com ela”. Então, essa coisa do não querer perder nada acontece, e é muito triste.

Não querer nada no sentido de não querer perder o privilégio?

Exatamente. Essa é uma questão que choca e tem muito a ver com o alargamento do que significa o essencial. Vivemos uma condição extraordinária, mas queremos continuar vivendo uma vidinha ordinária. Eu quero que minha vida continue com todos os seus privilégios, com os acessos. É algo ambivalente. Temos dificuldades de abrir mão de privilégios e mesmo de coisas que não são privilégios. 

E por que a gente insiste em chamar algumas coisas de essenciais?

Fiquei pensando nisso: quais são as estratégias que ganharam espaço e perfomam normalidade? Tem um orientando meu, um pesquisador, que fez um trabalho muito interessante sobre as ocupações de leitos de UTI, que foram aumentando praticamente quinzenalmente. O que acontece? A Prefeitura e o Governo sempre sugeriam que a pandemia estava controlada, que estava muito bem, e quais eram os artifícios, as justificativas? Que o índice da UTI estava estável. Mas, a cada semana abriam leitos e ocupavam leitos. Então, há muitas vezes uma estratégia de transformar uma situação anormal em normal. A ideia de normalidade se baseia num índice de ocupação de UTI. Me parece que a ideia do serviço essencial tende a fazer isso. Se você pegar a portaria que determina o que é serviço essencial, a lista é enorme, é difícil achar alguma coisa que não seja chamada de essencial. Aí entra outro vocabulário: flexibilização. Flexibilização foi uma palavra que cansou 2020.   Lojas cheias em Salvador durante a pandemia (Foto: Nara Gentil/CORREIO) Aqui, temos bandeiras para checar a situação da pandemia, não teve uma única semana epidemiológica que os prefeitos não tivessem recorrido à Justica para reverter a cor de bandeira. "Tudo bem, a gente aceita a bandeira vermelha, se usarmos o protocolo da bandeira amarela", diziam. Essas coisas foram dando um jeito de transformar as coisas em essenciais. Tem uma gramática bem elástica e, de alguma forma, quando nos demos conta, tudo estava aberto, porque tudo virou essencial. A ideia do “essencial” reflete também uma performance de controle. 

Você acha que esse não querer "perder nada" tem cobrado seu preço agora?

Acho que existem camadas de complexidade em relação a isso. Sempre cobramos, de certa forma, uma ação vertical. Na prática, conversando com as pessoas, a gente vê uma interdependência muitas vezes horizontal, um cuidado mais horizontal, uma cidadania doméstica, porque não dá para esperar a solidariedade vinda do vertical. Não dá para esperar solidariedade de corporação, de banco, deste governo. Claro que há atitudes de alguns indivíduos que extrapolam a racionalidade. Acabei de ver no noticiário o caso de uma enfermeira que estava jantando numa lanchonete, o que está proibido, devido às restrições. Ela abriu o embrulho e comeu ali. O proprietário chamou a polícia e ela foi lá, cuspiu nos policiais e avisou: “olha, estou com coronavirus”. Essas histórias aparecem o tempo todo. Têm vezes que não dá para esperar muito. Mas, não dá para perder a perspectiva de que existe solidariedade, confiança uns nos outros em alguns núcleos, confiança ao conhecimento que se tem acumulado. 

Em 2018, as redes sociais escancaram a polarização. Você enxerga algo parecido agora, entre os que aderem ao isolamento social e os que não?  

Sabe, eu comecei a me dar por conta disso quando um colega de pesquisa começou a se infiltrar nos WhatsApps bolsonaristas. A qualificação pega: quarentener, ficaemcasista. A própria ideia de polarização é importante de se pensar. Acho complicada essa palavra que voltou em voga. É realmente uma tentativa de simetrizar o que é incomparável. Não dá para polarizar certas coisas, simetrizando elas. Me incomoda a ideia de que confundir política com polícia. Polícia quer ordenamento. Jacques Rancière [filósofo francês] trabalha com a ideia de política como dissenso, a capacidade de viver com a inúmera gama de diferenças, de experiências sensíveis de mundo. Política muitas vezes é vista como consenso, mas ele diz que consenso é coisa de polícia, política é da diferença.

A gente sempre invisibilizou os radicalismos, ao tentar ver política como consenso, em nome de um ideal de coesão. Obviamente, a gente se assusta quando a porta é batida com força. Me lembro de um texto de Humberto Eco que dizia que as redes sociais tinham tido mesmo esse efeito de produzir formas de ativismo, mas dar voz para idiota falar pelo fascismo. A segunda realidade é a facilitação. Quando você vê o tipo de permissão que algumas pessoas tem de exaltar estuprador, torturador, que é grave, isso fica claro. 

Mas você enxerga essa cisão, agora, entre pessoas que julgávamos aliadas?

Minha decepção vem muito dessa ideia da “escolha difícil”. Em 2018, eu já tinha visto isso com o “eu não sou bolsonarista, eu sou antipetista”. O meu círculo de pessoas mais próximas se fechou bastante. Bolha também, né? Mas, dentro dessa bolha eu identifico algo parecido: pessoas que não são de extrema direita, fascistas, nada disso, mas que fazem muito eco a essa ideia do revolucionário de rede social, polícia sanitária de rede social. A mesma pessoa que critica certas coisas, aglomerações, no outro dia está viajando para certo local. Mas está deserto, estou me cuidando, adotando os protocolos, tá vendo aqui?

O ativista de rede social questiona não sei o quê, mas, ao mesmo tempo, faz escolhas individuais que contrapõem as bandeiras que são levantadas por ele. Não é preciso caçar, ir atrás, para ver isso. Protocolo virou palavra mágica. Ligou alerta do carro, para onde quer, estaciona onde quer. O protocolo virou isso, um sinal de carro. 

E você acha que diante da falta uma política pública para assistenciar os cidadãos, é possível ter poder de escolha? 

Olha, falta estrutura para que a gente faça a escolha correta. Moro aqui num bairro bem privilegiado de Porto Alegre, mas não há na rua nenhum lugar onde eu possa lavar a mão. Todas as coisas são privatizadas. Não tem máscara, não tem álcool, eu tenho que comprar. O governo do Estado queria que as pessoas voltassem para a escola, mas queria que os pais arcassem com tudo. Não existe oportunidade para muitas pessoas fazerem essa escolha certa. Essa lógica de individualizar é complicada, sem estrutura pública de cuidado. Se eu não uso máscara, eu impacto a coletividade, mas eu que tenho que levar minha máscara, meu álcool, porque o governo não disponibiliza.

Às vezes, é má vontade, às vezes, falta de condição. Um dia desses, dei uma de doido da máscara, eu estava tão chateado, e peguei um bocado de máscara que tinha comprado de uma associação, e outro bocado de máscara descartável. Saímos eu e minha esposa distribuindo máscara para pessoas que vivem nas ruas, porque as pessoas não vão abrir a janela do carro, para dar grana, se eles não estiverem protegidos. É um pouco nesse sentido: comprar máscara pode significar não comprar comida. Nem todos tem escolha. Por isso, tenho chamado muitas vezes atenção, enquanto pesquisador, que a gente precisa entender as complexidades, e não simplesmente simplificar. Não dá para olhar o ponto de ônibus está cheio e falar que aquelas pessoas são erradas, porque estão naquela aglomeração. Quais são as condições estruturais que obrigam aquelas pessoas a estarem ali? As pessoas não enchem a linha do trem voluntariamente, porque querem. Outro dia, fiquei muito mal, novamente no supermercado. Tem uma senhora que corta os frios. Fui comprar queijo e comecei a conversar com ela, quando já tinha começado esse lockdown fajuto. Ela estava muito mal, porque tinha que pegar um trem para chegar em casa, a 60 quilômetros do trabalho. Antes, o trem funcionava até 1h da manhã e começou a parar às 20h. Só que daí toda população que pegava trem depois, começou a pegar no mesmo horário. "Muita gente é obrigada a gerir o risco", diz antropólogo ao defender que precisamos enteder a complexidade das situações (Foto: Arisson Marinho/CORREIO) E aquela senhora lamentava aquilo, dizendo que ia ficar doente, que daquela não passava. Ela deixava para ir mais tarde embora, para não ficar aglomerada, e agora teria de começar a fazer isso. Enquanto falava, ela começou a chorar. Nesse sentido, dá para a gente fazer julgamento moral? É importante entender a complexidade. Muita gente sabe que está exposta, mas é obrigada a gerir o risco.

Muitas vezes temo visto uma defesa do tempo de lazer de pessoas que trabalham nesses "serviços essenciais", indo para festas, aglomerações. Você acha que dá para ser compreensivo? 

Mais imediatamente, eu diria que não. Não pelo fato de fazer festa, o que não dá para ser compreensivo é com o sistema que obriga essas pessoas a se exporem em nome do trabalho. A qualificação moral entre trabalho e lazer esconde o fato de que não deveríamos trabalhar em situações insalubres. Muita gente vive no limite, a gente vem morrendo aos poucos. O capitalismo é uma doença comprida que se instala na gente. A gente vive esse modelo de mundo onde o trabalho é valorado como algo pelo qual vale qualquer risco, que vale a morte, inclusive, mas outras situações não são tão moralmente qualificadas. Com isso, eu não estou defendendo fazer festa, aglomeração. Eu estou defendendo que as políticas não exponham as pessoas em nenhuma situação, ao paredão, à praia, onde quer que seja. Mas, é complexo. Eu conversava com uma orientanda que é farmacêutica e ela me contava que se preocupava muito com o distanciamento das pessoas, onde trabalha. Um dia, ela foi tomar um ar, e viu que as mesmas pessoas de lá de dentro saem e pegam ônibus lotados. Não justifica fazer festa, aglomerar, mas não dá para achar totalmente incompreensível. O argumento delas... é difícil de simplesmente ignorar. Por que eu não posso me divertir se eu tenho que ficar trabalhando? Deveríamos nos perguntar uma coisa anterior a essa exposição. 

Quando você fala dessa diferença entre lazer e trabalho, você consegue ver uma tentativa de matar o ócio, o tempo morto?  Sem dúvida. Nós dois somos um exemplo disso, eu ainda vou ter que trabalhar depois da nossa conversa [à noite, por volta fas 20h] e talvez você também. Eu escutei mais de uma vez, em situações de trabalho, mesmo por parte meus colegas sendo defensores do isolamento e de todas as coisas que conversamos aqui, se eu não poderia tirar dez minutinhos para uma reunião. Eu estava de férias. Não, não posso, estou de férias. Eu vou ficar em casa, estou de férias, e parecia complicado justificar uma coisa que na verdade era óbvia. Esse ano que passou foi um ano muito complicado. A gente não tem se dado aquele tempo. O tempo está desdobrado, acumulado. Se você entrar na minha rede social, você vai ver uma foto da minha mesa com três reunião. Eu brinquei que estava me especializando em formação de quórum. A colonização da ideia de que a gente precisa utilizar o tempo para alguma coisa mostra isso. As 40 horas de dedicação exclusiva do meu trabalho, na verdade, são uma vida de dedicação exclusiva. Mesmo que a gente a conteste, a manutenção dessa ideia permanece mesmo entre os contestadores.  

Você já escreveu que os agravamentos da pandemia dependem também questões culturais, sociais e econômicas. Quais questões foram ignoradas?

Não tenha dúvida que todas essas pautas sobre as quais conversamos foram ignoradas. O lobby das corporações, seja quais forem, é muito poderoso, a ponto de ditar as regras sanitárias do país. Você tem universidades envolvidas na pesquisa, pesquisadores afirmando claramente que precisávamos fechar, repensar as condições de trabalho, circulação. A secretaria falando a mesma coisa, consórcio de hospitais também. Daí o prefeito daqui falava: "vou me reunir com os empresários para saber qual vai ser a decisão".

No final da tarde, a notícia: “seguindo as orientações dos empresários, o prefeito decide não fechar o comércio”. O comitê de gestão de risco aqui no Rio Grande do Sul tem mais empresários do que cientistas, aí você vê a gravidade. O vírus precisa dessa infraestrutura para atuar, precisa de situações que o favoreçam, e temos inúmeras de situações que favorecem ele - renda, informalidade, saneamento básico. 

Isso tudo tem mostrando que essa é uma oportunidade de refletir nossa natureza muitas vezes hipócrita?

Queria muito que pandemia servisse muito mais para a gente ter autocrítica em relação a nossa posição em coletividade. Muita gente tem pensado a própria vida, em termos particularidades. Esse tipo de reflexão sobre a própria vida temos feito e visto. O que precisamos fazer é uma reflexão sobre nossa responsabilidade enquanto coletividade. Precisamos refletir nossa responsabilidade enquanto coletividade. As pessoas precisam entender porque elas se negam usar uma máscara, porque é desrespeito à coletividade. Saúde é um tópico coletivo, que exige uma preocupação comigo, contigo, com os ambientes. Acho que a gente realmente deveria de pensar a pandemia mais como um desses sinais de que esse modelo individual, ultraliberal, da própria vida, dos outros, é um modo de vida doentio. Não adianta continuar tocando nossas vidas assim, porque a gente vai morrer dessa morte comprida da autodestruição. Acho que deveria ser uma questão de coletividade, uma experiência muito mais coletiva que individual.