Relato: 'Passei 8 dias intubado na UTI. Foi muito doloroso, tive pesadelos e não sabia se estava vivo ou morto'

Confira a história de um idoso de 76 anos que sobreviveu após ser intubado e chegar a ter apenas 20% de possibilidade de sobrevivência

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  • Vinicius Nascimento

Publicado em 27 de março de 2021 às 06:59

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Acervo Pessoal

Quando Fernandão cabeceou a bola contra o gol da Ladeira da Fonte das Pedras e empatou o jogo entre Goiás e Bahia pela 35ª rodada do Campeonato Brasileiro, uma boa parte da torcida tricolor provavelmente entregou os pontos ao rebaixamente à Série B. Parecia impossível reverter a situação. Não havia clima e a esperança pareceu ir embora.

Àquela altura, Ailton Teixeira Marinho estava em observação num leito clínico do Hospital São Rafael há três dias e assistia ao jogo desgostoso, sem imaginar o que viveria a partir do dia seguinte, quando os sintomas do coronavírus se agravaram no corpo do aposentado, na época com 75 anos: a oxigenação nos pulmões desceu para 92%, ele precisou ser intubado quase imediatamente e chegou a ter uma possibilidade de sobrevivência estimada em apenas 20%.

Nem o histórico de atleta dele, que na juventude jogou futebol por clubes como Galícia, Leônico e até no seu clube do coração, o Bahia, pouparam o simpático Ailton e sua família de todo o sofrimento gerado pelos 53 dias de intubação. Oito deles numa UTI, sozinho, tendo pesadelos e alucinações sem saber onde estava.

Mesmo após sair da Unidade de Terapia Intensiva, ainda passou quase um mês em reabilitação, ou, como ele mesmo diz: reaprendendo a viver. Depois de criar 6 filhos, duas mulheres e quatro homens, ele não esperava que nesta altura da vida fosse aprender como andar, falar, trocar de roupa e até respirar. Recuperado e lúcido, seu Ailton contrariou a triste estatística de que 80% das pessoas intubadas em decorrência do coronavírus perdem a batalha e a vida para a doença. Ele voltou pra casa na última quinta (25), quando completou 76 anos e abriu a câmera do computador para escrever o relato abaixo. Confira.

Leia a matéria principal: O terror que pode ser a única saída: entenda como acontece a intubação na covid-19 Seu Ailton sobreviveu aos pesadelos físicos e psicológicos da UTI. Agora, com 76 anos, quer sonhar como uma criança (Foto: Acervo Pessoal) "No final de janeiro comecei a sentir dores nas pernas, um cansaço diferente. Apesar da idade, sempre fui uma pessoa ativa no meu dia-a-dia, nunca fui de sentir muitas dores, principalmente nas coxas. Toda tarde entre 16h30 e 17h comecei a sentir uma moleza no corpo. Aquela coisa de que 'poxa parece que vou ficar doente' e o corpo esquentava. Quando botava o termômetro ficava entre 37, 36.9, 37.5. E isso foi até o dia 3 de fevereiro, quando Gabriel [filho] falou que teria que me levar para o [Hospital] São Rafael.

Neste momento, minha esposa também começou a apresentar alguns tipos de reações como dor de cabeça, o corpo mole. Quando cheguei lá, a minha oxigenação estava em 92% e a dela estava em 99%. Fomos os dois juntos para o consultório do médico, ele fez os exames, liberou ela e disse que eu teria que ficar [internado] porque eu estava com 75% dos pulmões comprometidos. Aí já fiquei no São Rafael e fui para a semi-intensiva.

Quanto à intubação, eu não sei dizer nada, não me lembro de nada, nem sabia que estava intubado. O primeiro processo foi de me medicar na semi-intensiva aí eu via tudo. Depois começou o processo de sedação e depois disso não vi mais nada. 

Toda a minha família foi avisada. De tudo, desde a minha sedação. Tinham boletins diários. Uma amiga que trabalha no São Rafael falava direto com médicos que me acompanhavam. No caso da intubação, falaram no dia seguinte à intubação. Foi intubado às 20h e a família soube no boletim do dia seguinte. Mas eu só fui saber disso essa semana, voltando para casa depois da reabilitação com meu filho.

Aqui em casa, mais gente teve Covid. Gabriel teve fraca, tipo essa de jogador de futebol que leva 3, 4 dias e depois passa. O "premiado" da família fui eu. 

É difícil saber como foi que a gente se contaminou. É o contato mesmo. Eu saía muito, né? Ia para mercado, banco, sempre me preservando com máscara, álcool gel, obedecia a distância que os mercados e até feira marcavam no chão. Quando eu chegava na [feira das] Sete Portas e via aglomeração ia para outra barraca menos cheia. Mas o negócio quando tem de vir, não adianta.'Foram oito dias de intubação. Eu entrei no São Rafael no dia 3 de fevereiro e saí no dia 27. Esse período foi muito doloroso, muito difícil. Não sei se foi a sedação ou intubação. Tive muitos sonhos, muitos pesadelos horríveis. Lugares que não sabia onde estava, não sabia o que tinha acontecido comigo, não sabia se estava vivo ou morto. Coisas horríveis. Nada bom, nada bom. Não sentia dores. Era mais psicológico.'Nos três primeiros dias, depois de acordar eu não reconhecia ninguém. Segundo os relatos deles [os familiares], fiquei um pouco mau humorado, não queria responder as coisas quando me perguntavam. Mas não me lembro de nada. Foram três dias como se tivesse do mesmo jeito, intubado. Eu estava vivo, mas não lembrava de nada. Não sabia onde estava, quem eram as pessoas e estava cercado por todos eles.

Teve um dia, acho que foi na véspera de tirar a intubação que recebi a visita de Gabriel e meu filho Tiago, que é engenheiro de Minas no Pará. Tiago entrou primeiro, com o médico, e imediatamente tudo meu se descontrolou. Pressão, oxigenação. Intimamente eu senti a presença dele. Senti que ele falou comigo, me pediu para acordar. Eu senti toda essa vibração e aí descontrolou tudo. Quando o médico tirou, entrou Gabriel. Com Gabriel tudo voltou ao normal. Mas eu não vi e não me lembro de nada..

Quando saí da sedação, não lembrava de nada. Perdi um pouco a memória, tinha um desequilíbrio físico e mental. Precisei ir a uma clínica de reabilitação, a Florence ali em Nazaré. Fiz terapia ocupacional, fisioterapia, muita coisa. Eu aprendi a falar, aprendi a andar, me equilibrar. Voltei a ser um recém-nascido. Uma criança de um ano, em seus primeiros contatos com a vida. Eu queria fazer um aviso a esses jovens que estão brincando com essa doença porque só entende a seriedade quem passa por ela. Conversei com meus filhos e familiares que eu não me arrependo de ter tido essa doença, foi uma lição de vida. Aprendi muito. Mas foi muito dolorido. Sempre ouvi os mais velhos falando que ninguém levanta sem cair e eu precisei cair para levantar. É uma experiencia boa, um pouco chata por deixar os familiares aqui fora tensos, preocupados, desesperados com medo do que pode acontecer com a pessoa. Mas para mim foi uma experiência muito boa. Você volta urado, renovado, aprendendo a tomar mais conta de você, mesmo sabendo que nunca mais será a mesma pessoa.'Eu aprendi a falar, aprendi a andar, me equilibrar. Voltei a ser um recém-nascido. Uma criança de um ano, em seus primeiros contatos com a vida', Ailton Teixeira Marinho.Agora eu não estou mais engatinhando. Estou andando normal. Fazendo tudo sozinho. Tomo banho, levanto, troco minha roupa, limpo as gaiolas de meus canários que estavam morrendo de saudade, mas com moderação. Ainda sinto um pouco de desequilíbrio se eu andar ligeiro. Os músculos estão começando a reagir agora. Meu aniversário está sendo cercado de meus filhos porque as pessoas não podem mais vir aqui, estamos afastados por causa da pandemia. Um aniversário sem muitas delongas, com paz e muito amor."