Riqueza e vida simples não são um paradoxo

O especialista em finanças Gustavo Cerbasi lança o livro A Riqueza da Vida Simples e fala com o CORREIO sobre assuntos como o minimalismo

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  • Roberto Midlej

Publicado em 3 de junho de 2019 às 06:30

- Atualizado há um ano

. Crédito: divulgação

Durante muito tempo, na lógica capitalista, acreditou-se que uma vida de qualidade está relacionada à aquisição de bens materias. Mas isso vem mudando e já há muitos que defendem o consumo consciente e responsável.

Gustavo Cerbasi, em seu mais recente livro, A Riqueza da Vida Simples (Sextante/R$ 40/176 págs.), aponta caminhos para quem busca uma vida mais equilibrada financeiramente. Autor do best-seller Casais Inteligentes Enriquecem Juntos e de mais 15 livros, Cerbasi é mestre em administração e possui especializações em finanças.

Em conversa com o CORREIO, Cerbasi fala sobre assuntos como o minimalismo - que muda a relação das pessoas com a forma de consumir - e enfatiza o quanto é importante conversar sobre questões financeiras. E o autor já pôs em prática seu projeto pessoal de vida simples: tem uma casa sustentável, que é autossuficiente em água e vai tratar todo o esgoto produzido. 

1) Por que finanças causam tantas angústias, mesmo naqueles que não são endividados?

Na verdade, as finanças não causam angústia. Finanças nos ajudam a mapear nosso comportamento e descobrir as falhas que cometemos. O que causa a angústia é a dificuldade de reconhecer que cometemos erros e falhamos. E, mais ainda, a dificuldade de compartilhar esses erros com a família para desfazê-los. O ser humano tem dificuldade de voltar atrás quando percebe que errou, ele quer manter o erro e encontrar soluções, que são menos prováveis de serem bem sucedidas. Por isso, as angustias e ansiedade. Alguns resistem a fazer um planejamento financeiro porque vão descobrir que o erro não é da falta de renda, da economia ou do aumento dos preços, e sim da falta de organização pessoal para manter escolhas equilibradas, incluindo boas opções de consumo e escolhas mínimas de investimento.

2) O título do seu livro é "A Riqueza na Vida Simples". "Riqueza" e "vida simples" são conciliáveis ou isso não é um paradoxo?

Não só nesse livro, mas em meus livros anteriores eu já recomendava para as pessoas que o caminho para conseguir poupar, alcançar objetivos e sonhos, inclusive o sonho da independência financeira, envolvia simplificar os grandes gastos. Como exemplo, eu usava rever a escolha da moradia, do meio de transporte e de outros gastos mais pesados. Com isso, ter mais qualidade de vida, para ter a motivação necessária para sustentar a disciplina para ter um plano de longo prazo de investimentos. Eu trago no livro “A riqueza da vida simples” uma série de exemplos, recomendações e práticas inovadoras que fazem com que essa simplificação do gasto com moradia não se torne um simples processo de barateamento ou eliminação de conforto. Muito pelo contrário, eu comprovo ao longo do livro que, com boas escolhas, essa vida mais barata pode ser até mais funcional, mais prática e mais confortável do que seria uma vida mais convencional e consumista. Então, não há paradoxo. Eu deixo muito claro que quem adotar uma vida mais simples estará garantindo uma vida com mais realizações, mais experiências, mais segurança e mais tranquilidade.   

3) Por que temos tanta dificuldade em economizar? Há alguma relação com ansiedade?

Na verdade, o erro está na falta de orientação ou de uma educação específica para isso. Só agora a educação financeira está chegando nas escolas, com a inclusão na Base Nacional Comum Curricular, tornando-se obrigatória até nas escolas públicas a partir de 2020. Os adultos de hoje não tiveram orientações de como priorizar gastos. O erro que a maioria comete é o de se basear no quanto ganha para primeiro escolher como consumir, qual moradia cabe na renda e que tipo de transporte é possível ter. Com isso, o lazer fica como algo que só irá acontecer na hipótese de não haver nenhum tipo de imprevisto. O investimento então, em uma hipótese mais remota ainda. O erro grave está na ordem errada das escolhas. O correto é iniciar o planejamento da vida individual e familiar a partir do reconhecimento do quanto se ganha, definir quanto poupar para realizar grandes objetivos de curto, médio e longo prazo. A partir dessa separação do conceito de pague-se primeiro, definir o quanto gastar com qualidade de vida e que tipo de custeio eu vou assumir para o meu dia a dia. A vida simples será o caminho para conseguir viabilizar a poupança e também a qualidade de vida. Não é que eu vou cortar moradia, no momento de planejar eu vou perceber que a moradia que cabe confortavelmente no meu orçamento, pode fazer com que não caibam outras escolhas. A partir do momento que eu coloco outras escolhas como algo prioritário, eu vou concluir que eu preciso ter uma moradia mais simples e/ou mais criativa.

 

 

4) Uma das suas propostas é que as pessoas adotem o minimalismo. O que é isso exatamente e por que é importante? Novamente, não é um paradoxo falar em "riqueza" e "minimalismo"?

Inicialmente, as pessoas podem interpretar o minimalismo como abrir mão de riqueza. O conceito primitivo de minimalismo é ter uma vida com poucas decisões de consumo, o mínimo necessário de móveis e de roupas. Uma vida muito espartana, sem decoração, sem nenhum tipo de hábito consumista. O minimalismo que abordo no livro “A riqueza da vida simples” é uma forma de viver que se contrapõe ao consumismo, não é adotar um estilo de vida extremamente simples em termos de gastos. Na verdade, é praticar o autoconhecimento e identificar o que é realmente importante, e isso não deve limitar as conveniências do tipo casa, carro, plano de saúde e escola, e sim se você gosta de esporte, se pratica religião, hábitos gastronômicos, se gosta de estar com amigos etc. Ser minimalista significa identificar o que é importante e ter abundância somente naquilo, simplificando os outros gastos. Eu falei que é um modo de viver que se contrapõe ao consumismo, porque no consumismo todo mundo precisa ter tudo, um bom carro, uma casa confortável, roupas de grifes da moda, os filhos precisam ter videogames, patinetes, bicicletas e tudo aquilo que aparece nas novelas. Mas, esse estilo de vida cria muito entulho nas casas, coisas que são compradas e não são usadas. Em um estilo de vida minimalista, as pessoas vão ter qualidade e durabilidade naquilo que usam muito. Eventualmente, o que usam pouco será algo emprestado, alugado e compartilhado de outras pessoas que usam muito e disponibilizam para quem quase não usa. O estilo de vida minimalista está relacionado não só ao consumo, mas também ao convívio social. Por isso, eu acho que minimalismo não se contrapõe com a riqueza, minimalismo é ter escolhas muito mais ricas de qualidade, abundantes naquilo que para mim faz diferença e economizar no que é importante somente para os outros.

5) Hoje, muita gente associa "qualidade de vida" à aquisição de bens materiais? Isso tem sentido?

Não. Até porque essa é uma interpretação da geração ainda com comportamento consumista, com hábitos consumistas, que fazem comparações com vizinhos e pessoas próximas e que olham o que está e não está na moda. A geração mais jovem, pós-millennials, já é uma geração que entende como qualidade de vida poder ter mais experiências. A pessoa abre mão do carro, para se transportar de forma compartilhada e ter uma vida cultural mais rica, experiências mais ricas, gastar mais com educação e mais oportunidades de trabalho. É uma visão equivocada ter qualidade de vida com aquisição de bens. Eu entendo qualidade de vida como ter abundância naquilo que me motiva mais. Que pode ser trabalhar com eficiência, estudar mais, me divertir mais, reunir amigos em casa, isso é qualidade de vida. 

6) Em seus livros, você fala com frequência de "inteligência financeira". O que significa isso?

Educação financeira é a orientação, normalmente pautada em cartilhas, de como organizar o dinheiro, como fazer investimento e como sair das dívidas. O como fazer é a educação financeira, e isso já está presente nas mídias e em todos os canais de comunicação. Pode até ser tratada como uma moda no Brasil, porque qualquer pessoa pode ter contato ela. Porém, a moda ainda não virou prática na vida de muitas famílias. Eu considero inteligência financeira, o processo de transformar a educação financeira em prática. Acionar alguns gatilhos cerebrais, alguns processos de compreensão das vantagens que eu terei e dos benefícios, principalmente de curto prazo, ao adotar as práticas de educação financeira. As sacadas que vão me ajudar a forçar uma motivação que eu não vou ter no começo, para que com o passar do tempo os resultados dessa aplicação gerem uma motivação mais natural. Toda pessoa com 50 mil reais se multiplicando na poupança é mais motivada, o duro é você convencer essa pessoa a aplicar 50 reais por mês, abrindo mão de ir ao salão de beleza, por exemplo, porque o resultado de 50 reais por mês ao longo de um ano será irrisório. Inteligência financeira é conseguir ter práticas e sacadas que façam com que esse sentimento de frustração de curto prazo não exista. Por exemplo, continuar usando o salão de cabeleireiro, mas usando a criatividade para ter outros tipos de consumo, que eventualmente seriam cortados para economizar. Inteligência financeira envolve criatividade, conhecimento e envolvimento, para que as pessoas façam parte daquilo que a gente costuma chamar de mercado, mas na verdade o mercado é composto por pessoas financeiramente inteligentes que estão envolvidas nos processos e nas oportunidades. 

7) O Brasil vive uma de suas crises econômicas mais persistentes, que tem deixado muita gente desempregada. Como manter o equilíbrio emocional num momento de crise e de tanta apreensão?

Planos nos dão tranquilidade. Reservas de emergência nos dão paz em um momento que temos que acomodar algumas escolhas enquanto procuramos soluções para o desemprego. A crise econômica realmente é persistente e o nível de desemprego não diminui, mas famílias mais organizadas e com uma reserva de emergência conseguiram comprar algum tipo de equipamento, um automóvel, uma cozinha industrial ou um curso, algo que permitiu a essa família, na ausência de um emprego tradicional, criar uma forma de renda por necessidade e empreender por necessidade. Na crise, quem planejou ou elaborou um plano B, atravessou esse período com um pouco mais de tranquilidade e talvez fez daquilo que chamamos de “bico” o seu negócio principal. Quem, por outro lado, continua insistindo no erro de procurar emprego onde não existe, vai se sentir apreensivo, desesperado e perdendo todos os tipos de reserva. Aí sim nós vamos falar de um problema que pode até afetar a saúde das pessoas. Agora, organização, bom planejamento financeiro e uma boa conversa com a família, ajudam a driblar esse momento de dificuldade.

8) E os desempregados, como eles devem manter a paz de espírito?

Existe uma estratégia para desempregados, que não consiste em só procurar emprego. Ele precisa dividir o tempo dele de três formas. A primeira forma é procurando emprego, usando sua experiência, seu currículo, seus relacionamentos, seu tempo para ficar em uma fila e tentar um possível emprego. O outro terço do tempo deve ser utilizado fazendo um bico.  Algo que a pessoa possa utilizar sua habilidade pessoal para fazer renda, pode ser dirigindo por aplicativo, cozinhando para fora, fazendo reparos, dando aulas, ajudando alguém, um bico que ajude a colocar comida na mesa. O último terço do tempo deve ser utilizado para aprendizado, o tempo livre é uma dádiva. Em um mundo conectado, que temos acesso a programas de formação, informações, conteúdo e conhecimento. De repente, esse envolvimento da pessoa com universo novo de conhecimento, pode fazer com que ela encontre oportunidades de trabalho e de desenvolver atividades novas, que futuramente pode ser o seu emprego e a principal fonte de renda. Essa organização do tempo ajuda a passar pelo período de desemprego de uma forma mais tranquila.

9) Você tem uma casa sustentável? Como tem funcionado esse projeto e qual seu objetivo com ele?

Sim, tenho uma casa sustentável. Essa é a minha segunda propriedade, a que eu imagino ser a propriedade da aposentadoria ou a que eu vou passar a maior parte do tempo quando meus filhos estiverem mais encaminhados na vida. Inicialmente eu ia alugar e não comprar essa casa, acabei comprando como investimento. Ao longo do uso, vimos que ela acabou agregou grande valor para nossa família, é um espaço de convívio com os filhos, para receber amigos, para festas, um lugar muito divertido, sem poluição, apesar de ser muito perto de São Paulo, e a casa passou a ser algo muito valioso para nós. Mas a propriedade, tinha o risco de contaminar a água de uma nascente próxima e tinha também problema de falta de água nos períodos de estiagem e falta de energia nos períodos de maior instabilidade no fornecimento. Como a precisava de uma forma por não ser nova, decidimos incluir na reforma um sistema de captação de água da chuva, tornando a casa totalmente autossuficiente na captação de água, já que captamos quase o dobro da água que precisamos. Temos um sistema de separação da água com material orgânico, para destinar a “água cinza” (com gordura e sabão de banho) para os pés de frutas, aumentando a fertilidade do solo e a “água preta” (vasos sanitários e trituradores de lixo) vai para um sistema de tratamento de esgoto que produz parte do gás que a casa precisa. Então estamos falando captação de água, reuso da água e, além disso, temos um sistema de energia fotovoltaica, que transforma luz em energia. O investimento não foi barato para o tamanho da casa, mas se paga em oito anos. A vida útil desse sistema é de 25 anos, então ele se paga com muita sobra e se mostrou muito vantajoso para os próximos anos de utilização da casa.

10) Há relação entre uma vida simples e a preservação ambiental?

Não necessariamente. A vida simples ou a simplificação das escolhas é o caminho para ter uma maior liberdade de escolha. E tendo uma maior liberdade, eu posso, por exemplo, em uma casa que custa menos investir em um sistema de home office, trabalhando em casa. O que me permite sair do centro de uma cidade cara e trabalhar em uma região mais afastada, com a mesma qualidade de atendimento e com o mesmo tipo de serviço, eventualmente de deslocando para a cidade. Colocando na ponta do lápis o resultado da simplificação dos grandes gastos, com a flexibilidade que boas ferramentas de trabalho me permitem ter, eu posso ter uma vida mais simples e mais próxima do campo. Eu, Gustavo Cerbasi, escolhi como resultado dessa vida mais simples, resultado da sobra de recursos que eu tenho por ter comprado uma casa mais barato do que seria uma residência urbana, eu decidi investir na casa e tornar ela sustentável. Então ela é simples do ponto de vista das minhas escolhas, se tornou eficiente porque eu não tenho mais risco de falta de energia ou problema com oscilação do preço da energia, por exemplo, e se tornou também um benefício para a sociedade. O que no Brasil, pode ser questionado porque as pessoas são muito individualistas, mas sendo um benefício para a sociedade nós temos um bom motivo para que o governo pense em politicas públicas de financiamento desse tipo de solução, para que mais pessoas construam um futuro mais tranquilo, mais independente de oscilação de preço, mais ecológico e diminuindo o custo social de moradias mal planejadas.

11) O sonho de muita gente é se aposentar, mesmo estando ainda apto para trabalhar. A aposentadoria deve mesmo ser um sonho?

Na verdade, as pessoas não sonham em se aposentar. Elas estão cansadas do ritmo de trabalho, da falta de qualidade de vida, do quanto elas se sacrificam para colocar comida na mesa. A possibilidade de descansar em casa, ter a comida na mesa da família, com o dinheiro que vem automaticamente do INSS e do plano de previdência realmente pode ser entendido como um sonho. Mas, na verdade o problema não é a aposentadoria. Eu acho até que boa parte da discussão sobre reforma da previdência no Planalto está viesada porque os argumentos são errados. Costumam falar que a Dona Maria que acorda 4h da manhã carregando o balde de água na cabeça precisa se aposentar mais cedo e não precisa. Ela precisa de água abastecendo sua casa. Então, não é uma questão de aposentadoria. O que não entendem é que falta uma condição pessoal, essa condição que viria da educação, mas falta essa condição para as pessoas se organizarem no sentido de ter uma vida, obviamente com sacrifícios no começo, mas gradualmente mais equilibrada e que permita a elas terem mais qualidade de vida e se sentirem mais motivadas no trabalho e, com isso, estender o prazo de trabalho. Eu, se fosse interferir na Reforma da Previdência, estenderia o prazo de trabalho, para as pessoas se aposentarem depois dos 75 anos. Não é uma questão de precisar se aposentar, nós precisamos de planejamento nas famílias brasileiras, organização das estruturas sociais, para equilibrar as desigualdades, por exemplo, com as famílias que sofrem com 4 horas entre idas e vindas do trabalho, famílias que sofrem com esgoto passando na sua janela. O problema do Brasil não é a previdência, e sim a falta de estrutura social, que obriga o governo a dar mesada para aqueles que envelhecem ou adoecem precocemente.

12) Ter uma poupança é importante para nos deixar menos ansiosos em relação ao futuro? Qualquer um é capaz de poupar?

Eu não pensaria em um futuro tão distante não, ter uma poupança é necessário como reserva de emergência. Para lidar com os imprevistos que vão acontecer nos próximos meses da minha vida. Qualquer plano de investimento, não importa se a pessoa ganha 500 reais por mês ou 500 mil reais por mês, começa pela reserva de emergências. Se a pessoa tem uma reserva, ela sabe que um convite para um aniversário, um acidente, um problema de saúde podem gerar um desconforto, mas um desconforto que será acomodado pelo uso da reserva, sendo recomposta nos meses seguintes. Nós temos dificuldade de planejar nossa vida, no sentido de simplificar os gastos – falando novamente da moradia – com uma moradia um pouco mais simples, eu posso ter mais qualidade de vida e posso ter alguma poupança. A primeira poupança será para reserva de emergência, provavelmente não será na caderneta de poupança que deixou de ser o melhor investimento há muito tempo. Talvez títulos públicos, que hoje bem acessíveis e com 30 reais qualquer pessoa investe. O fato é que, uma pessoa que lida melhor com os imprevistos, consegue fazer planos mais consistentes. Se com o passar do tempo tiver um 13º salário, um aumento de renda, uma economia como resultado de um planejamento melhor, essas decisões começam a gerar a capacidade de poupança que falta ao brasileiro. Ao brasileiro não falta capacidade de poupar, falta capacidade para equilibrar suas escolhas, até porque quem mora em uma casa de 500 mil pode se mudar para uma casa de 400 mil e quem mora em uma casa de 50 mil também pode morar em uma de 45. Não estou falando de abrir mão da moradia, estou falando de ajustar com negociação e criatividade alguma escolha que pese muito no meu bolso, para que outras escolhas menores e igualmente importantes não deixem de existir na nossa vida. Isso é inteligência financeira.