Cadastre-se e receba grátis as principais notícias do Correio.
Da Redação
Publicado em 29 de agosto de 2022 às 05:22
Está resolvido.>
O problema da encosta ao lado da minha casa, sobre o qual escrevi há 4 meses atrás, está solucionado.>
Moro numa rua árida, uma ladeira sem uma árvore sequer. Construções dos mais diversos estilos e gostos, e uma encosta que dá para uma invasão.>
Em períodos dos mais brutais de chuvas, não lembro de ter havido desabamentos, pois 2/3 da encosta tinham sempre mato, vegetação, plantas que asseguravam uma melhor sustentação do solo.>
Incomodado com o mato, reclamei, faz uns anos, com os órgãos públicos: uma encosta com potencial de ser um belo paredão de flores e plantas ornamentais poderia embelezar a região, trazer mais sombra, menos calor, e mais natureza, pássaros; diminuindo um pouco a aridez e feiura da rua.>
Veio secretário, veio assessor, veio funcionário, veio de tudo durante meses com promessas de ipês, buganvílias; diversas ideias surgiram e foram acertadas. Inclusive, projetos de colocar árvores entre as calçadas e o asfalto.>
Há poucos dias, vieram capinar tudo. Poderia ser aquela boa e velha capinada que, de séculos em séculos, já com um matagal fechado e agradável aos ratos, resolvem fazer para dar um trato. Não. Iniciou-se um processo que rapidamente ficou claro o que seria: iam concretar a encosta, aquela típica contenção que vemos ao longo de toda cidade. Concreto. Cinza. Árido.>
O discurso é imaginado e serve bem aos desavisados: vamos acabar com o risco de desabamento, com o matagal insalubre, com os problemas ocasionados pela chuva e pela sujeira; vamos melhorar a encosta e a rua. Viva!>
Na prática, será mais uma obra em Salvador que caminha no sentido contrário das grandes cidades que pensam urbanismo, qualidade de vida, clima e meio ambiente. Minha rua ficará mais árida ainda.>
O concreto trará mais calor para o entorno, será menos um lugar de pouso e ninho para pássaros. A rua ficará mais feia e inóspita, sem sombra, ar mais poluído e desagradável. >
Em Salvador, o moderno é acimentar tudo. A relação com nossos rios e canais é uma vergonha. Sempre que podemos, em vez de tratar aquele manancial de água, estimular e replantar uma mata ciliar, que naturalmente contém enchentes, em vez de despoluir, desentupir, e até mesmo redimensionar e redirecionar a água que corre pela cidade, apenas tapamos ou destruímos nosso sistema fluvial. >
Diversos especialistas, estudiosos e pesquisadores – odiados, hoje em dia, por pessoas que louvam a ignorância, a brutalidade e a (des)informação do zap – deixaram claro o quanto o projeto do BRT era obsoleto, já na década de 80 do século passado. 40 anos depois, estamos derrubando árvores, tapando canais e rios, e entupindo a cidade de concreto, e mais concreto.>
Salvador não tem pequenos parques nem grandes praças arborizadas, zonas de respiro, com raras exceções mal aproveitadas, sem grandes atrativos, e geralmente perigosas. A maioria da cidade não tem árvores, passeios largos, o pedestre parece ser um estorvo ao asfalto que toma suas ruas, com seus carros buzinando, furando sinais, burlando radares, indo na contramão, em nosso exercício diário de corrupção e egoísmo.>
Assim, a cidade segue tornando-se árida, quente, inóspita e feia. Não adianta que novas praças sejam inauguradas, se o caminho até elas é inseguro e desconfortável. E a maioria dessas praças faz parecer que vivemos numa região de cerrado, ou caatinga; concreto e mais concreto.>
Tenho que ser honesto: é inegável que a cidade está muito mais bem cuidada. Contudo, a percepção de que pequenas ações são ignoradas ou negligenciadas faz com que muito do que é feito dê a sensação de que poderia ter sido feito de outro jeito, de um jeito menos açodado e pragmático. Mas seguimos rumo ao futuro entre pequenas melhores e novos problemas.>
O diabo mora nos detalhes, e há muitos detalhes da cidade que estão sendo soterrados, demolidos, concretados, retirando de Salvador possibilidades de ser uma cidade mais humana e bonita. Mas, apesar de tudo, ainda acredito em dias melhores, mesmo com o paredão de concreto que terei que suportar ao lado da minha casa, numa rua onde as flores da minha sacada parecem sequer conseguir furar o tédio, o nojo e o ódio, como no poema de Drummond.>