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Da Redação
Publicado em 4 de dezembro de 2021 às 07:00
- Atualizado há 2 anos
No decorrer do século XX, especialmente nos anos de 1930 e meados de 1950, Salvador da Bahia passou por significativas transformações, especialmente na imagem que era exibida no Brasil e o processo de identidade que estava sendo firmado. Décadas antes, na primeira república, a intenção por parte das elites políticas era clara: mostrar uma cidade “civilizada”, moderna, seguindo os ares europeus, excluindo outras faces. Nesse intricado jogo dos discursos das elites políticas nota-se um projeto excludente e hierarquizante que assumiu a tônica do que deveria ser a velha Cidade no Brasil daquele momento. >
Longe dos discursos hierarquizantes do período, nos anos de 1930, novos agentes começaram a descrever e mostrar os outros encantos que a Cidade da Bahia, como era conhecida Salvador, tinha. Entram em cena pescadores, a Baía de Todos os Santos, saveiros, ruelas com íngremes ladeiras e cortiços reunindo de tudo um pouco, e panoramas sociais que, ao mesmo tempo em que mostravam o que e é a Bahia, denunciavam descaso e abandonos. Jorge Amado publica nesse período algumas de suas obras mais significativas (Suor/1934, Mar Morto/1936, Capitães da Areia/ 1937), pontuando o social, emergindo contextos até então só sentidos por aqueles que vivenciavam a cidade em suas expressões populares. Dorival Caymmi, mestre da música, trouxe em sons o que só os homens dos mares conseguiram captar em suas labutas diárias, e exprimiu em canções toda a memória dos recantos da cidade, conselhos de lavadeiras em Itapuã e amores perdidos em tempos onde ainda se escrevia cartas. >
Foi por causa de um livro de Jorge Amado, (Jubiabá/1935) que Pierre Verger, francês de nascimento e baiano de alma, atravessou o Atlântico para desembarcar na Bahia. Na época, o lugar ainda tinha ares de província, como lembrou Kátia Mattoso em Bahia, século XIX: Uma Província no Império, em seus casarios coloniais decadentes, pintados predominantemente de branco, cercados pelas ruas do que foi a primeira capital da América Portuguesa até 1763; terra, como muitos diziam, “do já teve”.>
Amado, Caymmi, Verger, Voltaire Fraga, Odorico Tavares, Genaro de Carvalho, Otávio Mangabeira, Carybé, entre outros artistas, em meados do século XX, deram um salto, conseguiram capturar e mostrar em suas essências traduzidas em arte, não o que já tivemos em Salvador e na Bahia, mas sim o que a Bahia tinha na época deles. Esse é o exercício que hoje temos que desenvolver, evidenciar e valorizar a riqueza do que ainda temos de patrimônio histórico, belezas naturais, a força e a resistência do povo, a diversidade presente nas cores, culturas, artes e olhares daqueles que fazem de Salvador uma cidade especial. Longe de apostar em um exercício fácil, deve-se entender as dificuldades ainda presentes e resolver, com diálogo, empreendedorismo e respeito a história e os panoramas sociais existentes, os problemas que atravessam gestões e interpretações nem sempre corretas de como as coisas devem ser. >
O principal cartão postal da cidade, e um dos ícones de patrimônio no mundo, o Centro Histórico de Salvador, ainda hoje não é habitado e ocupado como deveria, investindo-se em moradia e em um eficiente programa de restauro dos seus imóveis, com parceira com o privado, em conexão com o restante da cidade. Boas iniciativas por parte da Prefeitura de Salvador com a ocupação da região do Comércio, restauro de prédios antigos como o Elevador do Taboão e a Cidade da Música, juntamente com as iniciativas do Governo do Estado nas ruas da Cidade Alta, sinalizam para novos momentos.>
O acertado projeto do Grupo Fera, com o Fera Palace Hotel, Palácio do Tira Chapéu e outros empreendimentos, inovaram toda a Rua Chile, em um exemplo de preservação e cuidado com Salvador e sua história. Mas, além de tudo isso, é fundamental pensar no entorno, nos impactos do ir e vir, na segurança, serviços, locomoção. Pensar em uma cidade moderna, respeitosa com sua história e povo e seus resquícios de verde. No cenário de pandemia, com as retomadas colocadas na mesa, é fundamental sensibilidade, planejamento, respeito e prudência. Abismos ou pontes podem ser construídos a depender de como essas ações sejam desenvolvidas. >
Não muito tempo atrás a Cidade do Salvador estava na boca do mundo de forma positiva, em seriados, filmes, matérias jornalísticas (New York Times, National Geographic ...) e no topo das listas de cidades procuradas pelos turistas. Fica evidente que é também no Turismo Cultural Sustentável que devemos investir. Recentemente, Salvador e a Bahia estão novamente em cena como um dos destinos mais procurados, um verdadeiro recanto de “coloridos e axé” que bebeu de todas as iniciativas pensadas a partir dos anos de 1970 por Antônio Carlos Magalhães, Paulo Gaudenzi e outros.>
Hoje, a cidade do Salvador, como grande porta de entrada, e a Bahia, como um todo, abrem-se em oportunidades diversas de investimentos, no litoral e no interior, onde em cada uma das 13 zonas turísticas é possível encontrar preciosidades do passado e deslumbres do presente. É quase que inacreditável (absurdo só para dar mais ênfase) que o potencial náutico do Recôncavo, com seus encontros de rio e mar, com conventos e engenhos arruinados, ainda não tenha passado por uma devida ação de valorização e restauro. Muito se perdeu e o que resta continua se perdendo.>
O que lança uma luz de esperança são as recentes obras via Prodetur Nacional, que sinalizam para caminhos que podem ser melhor geridos, a exemplo do Museu Wanderley Pinho (IPAC) e dos novos terminais náuticos espalhados no Recôncavo. Se, no passado, Salvador da Bahia era conhecida por seu contato com a Baía e com o Atlântico (lembrada por possuir um dos maiores portos do mundo no século XVIII), no decorrer do XX, a diretriz mudou, os caminhos via mar foram ficando de lado e assim continuaram até hoje.>
Por fim, a mensagem que fica no terminar desse texto é muito evidente, lembrando o escritor José Saramago: “se podes olhar vê; se podes ver repara”. É mais do que preciso reparar, analisar e cuidar do que ainda temos em Salvador e na Bahia. Nem é preciso inventar muita coisa, recordemos os mestres Amado, Caymmi e Verger.>
Rafael Dantas é professor, historiador e consultor>
Opiniões e conceitos expressos no texto são de responsabilidade dos autores>