Salvador e seus dois maridos

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  • Jorge Portugal

Publicado em 11 de dezembro de 2019 às 05:00

- Atualizado há um ano

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Primeiro pensei em “dois namorados”, depois em dois amantes e, finalmente, resolvi parafrasear meu xará, o Amado, no seu famoso livro. O fato é que, a exemplo de D.Flor do romance, Salvador possui dois homens na sua vida que a disputam com fervorosa paixão. O primeiro marido, casado com ela no cartório municipal, encontrou-a triste, debilitada, por causa de uma relação desastrosa com um cara que não a entendia profundamente e, por consequência, a maltratou demais.

O segundo, contraiu com ela núpcias num cartório estadual e, embora, dê suas “escapulidas” com um número assombroso de outras amantes (já houve quem contasse 416!) é por ela que ele nutre uma paixão voraz de menino pobre que vivia sonhando, um dia, pedir sua mão em casamento. Claro que onde tem amor tem ciúmes também. É da espécie humana. Por isso, não raro, essa rivalidade se transforma em disputa, com trocas de desaforos, ameaças retóricas, mas nada que resvale em violência física, ficando dentro do “padrão sueco” de civilidade de quem vive um excitante “ménage a trois”.

O marido municipal sabe muito bem que seu próprio avô a amou com sofreguidão e alguma possessividade. Nessa fase contemporânea da cidade, há uns quarenta anos, foi ele que lhe colocou os primeiros brincos, distendeu a musculatura do seu corpo crescendo-lhe a dimensão, tornando-a atrativa a olhares cobiçosos; por isso ele (o Neto) se sente um tanto herdeiro das relações amorosas do avô e resolveu cobri-la de mais mimos ainda.

Já o outro marido, apelidado “Correria”, o homem das 416 amantes, embora atencioso com essa quantidade enorme de “parceiras extra-conjugais”, parece embevecido ao olhar sua “esposa estadual” e também não lhe poupa mimos e presentes. Se Neto constrói uma bela praça, Correria vai lá e abre uma nova avenida; se Neto aprimora o sistema de iluminação, Correria responde com a construção de encostas; se Correria põe em movimento o metrô pelas vias e veias urbanas, Neto anuncia o BRT para fazer ligações não alcançadas.

E nessa contenda a cidade vai ficando mais bela, mais vaidosa do seu encanto singular e senhora dos mistérios inscritos na tríade “luso-banto-sudanesa”. Cada vez mais a “joia da América Portuguesa” como a chamavam nos primórdios do seu nascimento. Há poucos dias, caiu uma tempestade torrencial sobre a cidade, como há muito não se via, com danos e estragos de toas as ordens e tamanhos. O marido municipal ficou transtornado com a ocorrência. Num gesto belíssimo - dissensões políticas à parte - o marido estadual ofereceu todos os seus préstimos ao que fosse necessário, para que sua amada não sofresse tanto.

Ainda há um mundo a se fazer pela cidade: as desigualdades de sua gente, a pobreza de sua periferia, os acidentes geográficos do seu corpo, etc. Mas.. Que outra cidade do mundo possui o amor de dois maridos capazes de matar e morrer por ela?

Jorge Portugal é escritor, compositor e ex-secretário de cultura

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