Samba, cerveja e feijão: multidão festejou fim da ditadura na Baixa do Bonfim, em 1985

Em Salvador, eleição indireta de Tancredo Neves foi festejada no Bonfim, dois dias antes da Lavagem

Publicado em 4 de abril de 2021 às 07:00

- Atualizado há um ano

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Eleição indireta de Tancredo Neves, em janeiro de 1985, pôs fim à ditadura militar instaurada após golpe de 1964 (Foto: Carlos Catella/Arquivo CORREIO) Um Trio Tapajós não falhava nunca. Ainda mais no pé da Colina Sagrada, diante da Basílica do Senhor do Bonfim, em plena terça-feira, 15 de janeiro de 1985. A festa corria solta desde cedo, quando, das caixas de som do trio, se ouviu a seguinte mensagem: “Atenção minha Bahia, aos pés do Senhor do Bonfim já estamos sentindo a mudança do País”. Era o voto de número 344 para Tancredo Neves, o mínimo necessário para elegê-lo Presidente da República.

Ali, com a eleição indireta de Tancredo pelo Colégio Eleitoral, se encerrava o último governo militar de um regime que durou 21 anos. Esta semana, o golpe militar de 31 de março de 1964, que mergulhou o país num regime de exceção, completou 57 anos. A festa da comemoração pelo fim da ditadura, mostrada nas páginas do CORREIO de 16 de janeiro de 1985, completou 36. A comemoração, inclusive, tinha começado bem antes do anúncio feito no Tapajós.

Na verdade, as projeções já apontavam para uma vitória de Tancredo Neves sobre Paulo Maluf – ao final, foram 480 votos contra 180. Por isso, a festa já estava programada. “Não importa se o resultado já era conhecido. O que importava era colocar para fora toda a alegria, toda a esperança reprimida nesses 20 anos de regime de força. Importava gritar bem alto a palavra mágica: Tancredo”, dizia um trecho da reportagem publicada pelo CORREIO no dia seguinte.

O cientista político Cláudio André de Souza, professor da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab), Campus dos Malês, aponta que 35 dos 48 delegados da Bahia no Colégio Eleitoral votaram com Tancredo. Essas projeções de vitória já eram publicadas nos jornais nos dias anteriores. No Jornal do Brasil, por exemplo, a manchete do dia 11, quatro dias antes da votação, apontava que Tancredo iria morar na Granja do Riacho Fundo, em Brasília, até o dia da posse, 15 de março. Ninguém imaginaria que o presidente eleito seria internado na véspera e jamais tomaria posse. O vice, José Sarney, foi quem presidiu o país após a morte de Tancredo.“Entre os baianos, reinava um caráter quase consensual quanto à importância do retorno democrático, daí esse caráter ‘festivo’, também como um repertório sociopolítico, que se repetiria como forma de ‘fazer política’ tão comum entre os baianos, vide a antológica festa carnavalesca da Mudança do Garcia enquanto uma grande marcha política”, explica Cláudio André.O Bonfim, palco da celebração, já estava com a estrutura montada para a Lavagem do Bonfim, que aconteceria dali a dois dias. Além do trio elétrico, baianos festejaram com samba, batucada, cerveja, feijoada e frevo. Do alto do Tapajós, um single lançado por Elba Ramalho no ano anterior no Festival de Varadero, em Cuba, puxava os gritos de ‘acabou a ditadura!’.

‘Energia’, de Lula Queiroga, gravada por Elba, falava em entrar no clima [da democracia?] e ser feliz: “Deixa eu sair no seu bloco / Me laça, me beija, me faça feliz / O sol raiou / Tomou conta da praça / Sua energia / O sol raiou / Pra dizer ao país / Que hoje é o dia D”. A festa seguia firme, mesmo que o resultado da votação que deu a vitória a Tancredo Neves e a José Sarney ainda nem tivesse saído, o que só aconteceu às 12h24.

Depois disso, segundo reportagem publicada pelo CORREIO no dia seguinte, a festa foi pura emoção. Pela primeira vez, o Hino Nacional foi cantado do alto de um trio elétrico. Participaram do ato os blocos Ilê Aiyê, Novos Bárbaros, Olodum, Panela Vazia e Filhos de Gandhy. Antônio Carlos Santos, o Vovô do Ilê, lembra aquele dia.“O Ilê tem uma tradição de muitos anos de sempre ir pro Bonfim, nós chamamos de Cortejo da Negritude. É o lugar que nós damos o primeiro teste da banda para o Carnaval, fazemos o lançamento de músicas, como Pérola Negra, que foi lançada no Bonfim. E nas comemorações de Tancredo, o Ilê estava, até porque a Lavagem do Bonfim também virou um evento político-religioso”, afirma Vovô.Aquela terça-feira de janeiro de 1985 foi decretada ponto facultativo pelo Governo do Estado e pela Prefeitura de Salvador. Mas quem trabalhava em empresas privadas acabou ‘matando’ o dia de trabalho para também festejar o fim da ditadura. Foi o caso do economista Marcelo Athaide de Souza, 26 anos, que falou com a reportagem lá no Bonfim: “Hoje se inaugura um novo tempo e essa data vai passar para a história brasileira como o marco na escalada para a democracia. É melhor queimar um dia de trabalho do que não participar dessa emoção”, disse. Festa no Bonfim teve música, blocos e Trio Tapajós (Foto: Carlos Catella/Arquivo CORREIO) O professor Cláudio André aponta que Salvador respirava política na época, “de associação de moradores a sindicatos” e que um conjunto de organizações se mantiveram articuladas, como as Comunidades Eclesiais de Base e o MDB baiano, que se destacava como força política. Era o fim do AI-5 em 1979 dando um novo fôlego para a política. Nesse contexto, a Bahia se industrializava rapidamente e Salvador vivia um impacto significativo em sua urbanização. “Mesmo com as desigualdades latentes, havia um clima de modernização na economia e na sociedade. Um novo proletariado surgia e novos padrões de sociabilidade se consolidavam em uma nova Salvador que se erguia como sociedade e espaço urbano”, explica.

Esse espírito ajuda a explicar a emoção no Bonfim naquele dia. “A alegria, estampada no rosto de todos os presentes era expressa, através de gestos tímidos ou mais eufóricos. Um popular, por exemplo, chorou emocionado enquanto dizia, com voz embargada: ‘É a vez do operariado livre. A gente quer a liberdade’”, dizia outro trecho publicado na época pelo CORREIO.

A comemoração ainda se estendeu para outros pontos da cidade. Alguns manifestantes foram à Barra e, em botecos espalhados por Salvador, grupos menores festejavam. Foi o caso de Jailson Moreira, hoje com 58 anos. Na época, ele tinha 22 e chegava de volta a Salvador depois de um turno de trabalho numa refinaria da Petrobras.“Eu tava vindo do trabalho, chegando em Salvador, e foi aquele alvoroço, só que eu não fui pro Bonfim. Eu fui pro Barbalho, porque eu morava ali perto, e fui comer água junto com uns amigos da Escola Técnica. A gente se reuniu ali pra comer água e comemorar”, lembra.De volta ao Bonfim, um cena certamente ficou marcada na memória de quem aproveitou aquela festa. “Ao lado do palanque, um grupo de garis que estava encarregado de fazer a limpeza da área foi contagiado pelo clima e abandonou as pás e as vassouras, formando uma democrática roda de samba”, publicou o CORREIO. Uma nutricionista de 37 anos, Arlete Sanches Gouveia, se juntou a eles. “O Brasil agora vai mudar e eu vou junto com ele, rumo à liberdade”, disse.