Santamarenses assustados ao saber que cidade ainda é altamente contaminada por chumbo

Amostra de solo coletada pelo CORREIO aponta índice do metal 5.566% superior ao limite legal

  • Foto do(a) author(a) Alexandre Lyrio
  • Foto do(a) author(a) Yasmin Garrido
  • Alexandre Lyrio

  • Yasmin Garrido

Publicado em 24 de setembro de 2019 às 05:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Marina Silva/ CORREIO

A história do município de Santo Amaro com o chumbo já dura quase seis décadas, desde 1960, quando a Cobrac, antiga Companhia Brasileira de Chumbo, se instalou na cidade e deixou para trás quase 500 mil toneladas no metal, contaminando o ambiente e parte da população. No entanto, o que já foi música na década de 1980, hoje se transformou em pesadelo para os moradores da região.

Em visita à cidade nessa segunda-feira (23), um dia após reportagem do CORREIO sobre obra da Prefeitura de Santo Amaro que desenterrou parte da escória do solo contaminado, nossa equipe ouviu a população sobre os riscos causados. 

Parte dos santamarenses recebeu a notícia com surpresa e medo, porque, segundo eles, em nenhum momento a prefeitura alertou os moradores sobre a toxidade do material desenterrado. Após inúmeras visitas a Santo Amaro, entre os meses de maio e julho, a equipe do CORREIO colheu uma amostra do solo no local das intervenções da gestão municipal, levando o material à análise do Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai), por meio do Centro de Tecnologia Industrial Pedro Ribeiro (Cetind), localizado em Lauro de Freitas, na Região Metropolitana de Salvador (RMS). Ficou comprovado, conforme laudo expedido em 3 de julho de 2019, que o solo da cidade do Recôncavo ainda abriga escória de chumbo que ultrapassa em 5.566% os limites legais estabelecidos por lei como seguros à saúde.

Residente da Rua do Amparo, local onde foi colhida a amostra de solo, Maria Auxiliadora Castro, 60 anos, contou que, durante todo o período da obra realizada neste ano, ela manteve a porta de casa fechada e colocou um pano nas frestas das janelas para evitar contato com a poeira da escória. “Sabemos dos riscos, já que nascemos e nos criamos vendo esse problema do chumbo. Na família não tem ninguém que sofra diretamente com a contaminação, mas um tio meu, que foi funcionário da Plumbum (antiga Cobrac), morreu em decorrência de doenças causadas pelo contato com o metal”, declarou. Dona Maria criticou a postura da prefeitura ao não conscientizar a população sobre os risco de contato com a escória desenterrada.“A prefeitura não informou à população sobre os riscos decorrentes da obra, não houve nenhum alerta. Apenas um biólogo, que esteve na cidade, disse que não foi realizado nenhum estudo de risco e impactos à saúde da população. Abriram de forma irresponsável”, afirmou a assistente social aposentada.Ela lembrou, ainda, que, uma vez comprovada que ainda existe contaminação do solo de Santo Amaro, o Rio Subaé continua sofrendo com a toxicidade da escória, que chega a ele por meio dos lençóis freáticos.

Quem também se preocupou com a saúde após a reportagem do CORREIO foi Maria Angélica Souza Trindade, 74 anos. Ela contou que vai agendar uma visita à capital baiana para fazer exames e verificar se há quantidade significativa de chumbo no sangue. “Não fomos contra a obra, mas depois que ficamos sabendo que a escória ainda era contaminada, nos preocupamos, porque a prefeitura não falou nada sobre precauções”, disse a aposentada, que estava sentada em um banco na Rua do Amparo, já revitalizada, ao lado de quatro amigas. A aposentada Maria Angélica Souza Trindade, 74 anos, disse que vai procurar um médico (Foto: Marina Silva/ CORREIO) Nem todos têm a consciência de Dona Maria, até porque, muitos não imaginavam que a obra de revitalização da Rua do Amparo, feita sob o argumento de que reduziria os alagamentos decorrentes das chuvas, poderia causar riscos à saúde. Uma delas é Olga Militão, 75 anos, que acompanhou todo o processo de calçamento da cidade com escória, iniciado em 1980. Ela, porém, acredita que os reparos feitos pela Prefeitura beneficiaram os moradores.

“Eu moro em frente ao local onde as intervenções aconteceram. Cresci vendo caçambas carregadas de escória. A gente tinha que pisar naquilo. Não tinha jeito. Mas, eu sou 'madeira de dar em doido' e nunca tive nenhum problema de saúde por causa disso”, disse a dona de casa, que tem 3 filhos. “Apesar dos riscos, que eu já conhecia, porque vivo isso há muitos anos, essa obra acabou com os alagamentos nas ruas da cidade. Teve uma chuva recente, que encheu, mas a água desceu rápido pelos novos bueiros. A rua está quase toda asfaltada, a não ser a parte da igreja, que foi proibida pela Iphan”, contou.

O vice-prefeito e secretário de Administração de Santo Amaro foi ouvido pelo CORREIO antes da divulgação do resultado da análise feita com amostra de solo da cidade. Ele afirmou, à época, que as obras não colocariam em risco a saúde da população. “Os risco a gente vem correndo há muito tempo. Essa obra de hoje nenhum governo quis fazer, porque é de quebrar o chão. Essa intervenção era necessária para evitar os alagamentos na cidade”, justificou.

Em nota, a Secretaria de Saúde da Bahia (Sesab) afirmou, nessa segunda-feira (23) que “diante da situação, o governo do Estado determinou a criação de dois grupos de trabalho: um intersetorial coordenado pela Secretaria de Ciência e Tecnologia e outro intrasetorial da Secretaria da Saúde do Estado, coordenado pela Diretoria de Vigilância Sanitária/ Vigilância em Saúde Ambiental, envolvendo diversas diretorias”. No mesmo documento, a Pasta reforçou que “o grupo de trabalho de Saúde de Santo Amaro, que envolve Estado e Município, retomou as discussões com cronograma de reuniões bimensais para implementação do Plano de Ação de Saúde”.

O CORREIO tentou contato com o prefeito de Santo Amaro, Flaviano Rohrs (PP), e com o secretário municipal de Saúde, João Militão, mas não obteve retorno até o fechamento desta reportagem.

Enquanto isso, quem não se preocupa muito com os riscos à saúde é a criançada de Santo Amaro, que, após as obras de infraestrutura realizadas na Rua do Amparo, podem jogar bola sobre o asfalto. “A gente tem que viver, né? Tem horas que a gente esquece que a cidade é contaminada, mas não deveria”, disse uma moradora do bairro do Sacramento, um dos que mais sofrem com os resquícios da escória de chumbo. Segundo ela, que é enfermeira e preferiu não se identificar, “enquanto a fábrica operou na cidade, muitas crianças nasceram com malformações, anomalias, e ninguém ligava isso ao chumbo”. Crianças brincam na Rua do Amparo, já asfaltada (Foto: Marina Silva/ CORREIO) Pauta nacional Cidade do Recôncavo baiano, com quase 60 mil habitantes, Santo Amaro ocupa, há muitos anos, o cenário nacional, principalmente na Câmara dos Deputados, em Brasília, onde se discutem os rumos da contaminação por chumbo na cidade. Atualmente, cerca de 10 propostas tramitam na Casa e envolvem a discussão dos impactos ambientais e à saúde humana causados pelo passivo tóxico deixado pela Plumbum na região.

No último dia 18 de setembro, no entanto, o deputado federal Arnaldo Jardim (Cidadania-SP), rejeitou o projeto de lei 10.874/18, que pedia a proibição de atividade de mineração em faixa de dez quilômetros no entorno de unidades de conservação, de autoria de Lincoln Portela (PR-MG)..

Para o relator, “a restrição da atividade de mineração com a fixação de zona de amortecimento de até 10 km é arbitrária e prejudica qualquer perspectiva do desenvolvimento sustentável do país”. O deputado Arnaldo Jardim chamou a proposta de “inconveniente” e negou provimento ao pedido.

Já em julho deste ano, foi realizada uma audiência na Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara para “debater a contaminação por chumbo na cidade de Santo Amaro da Purificação, Bahia”. De acordo com o deputado federal Valmir Assunção (PT-BA), autor do pedido, o encontrou deveria acontecer “não só para atualizar este debate, como encontrar junto ao poder público soluções para a população santamarense que ainda convive sob o risco de contaminação, mas também para atender a demanda de diversos atingidos que ainda esperam a sua reparação”.

Já a Assembleia Legislativa da Bahia (AL-BA), que foi procurada pelo CORREIO para dizer se há algum projeto ou discussão na Casa sobre o tema, não retornou até o fechamento desta reportagem. Em agosto de 2007, o ex-deputado estadual Álvaro Gomes (PCdoB), derrotado nas eleições de 2018 e atualmente sem mandato, levou à AL-BA o projeto de Lei 16.622, que propôs a criação do centro de tratamento às vítimas de chumbo e outros metais em Santo Amaro. A medida previa, ainda, o pagamento de um salário mínimo aos afetados pelo metal e que apresentassem incapacidade labora. O projeto foi arquivado em 31 de março de 2016.

Desde 2005, a Assembleia Legislativa da Bahia (AL-BA) teve dois projetos de lei e três requerimentos para o debate sobre a situação da contaminação por chumbo do município baiano de Santo Amaro. O último pedido, feito em 2015 pelo, à época, deputado estadual Mário Negromonte Júnior, que requereu a criação da Frente Parlamentar para debater a situação das vítimas contaminadas na cidade do Recôncavo e em Boquira, na Chapada Diamantina, locais onde a Plumbum operou entre 1960 e 1993.