‘Se não postar, não funciona’: compartilhar momento da vacina pode incentivar adesão

Movimento espontâneo nas redes sociais é visto com bons olhos por pesquisadores

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  • Thais Borges

Publicado em 22 de agosto de 2021 às 05:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Fotos: Acervo pessoal

Ainda no posto de saúde onde tomou a vacina contra a covid-29, o criador de conteúdo Ismael Carvalho, 28 anos, pediu a uma jovem que estava no local que tirasse sua foto. Na imagem, que foi pouco depois publicada em seu perfil no Instagram, posava com o cartão de vacinação. Antes disso, ele próprio tinha gravado o momento em que uma vacinadora aplicou o imunizante. "Eu estava muito ansioso. Fui sozinho aqui perto de casa e postei uma parte da letra da música Amarelo, de Emicida, com uma frase de esperança", conta ele, que se vacinou no último dia 7, quando sua idade foi liberada. Ismael, hoje com 36 mil seguidores, começou a criar conteúdo na pandemia. No mesmo instante, o post começou a receber centenas de comentários e alguns milhares de 'likes'. Mas não foi só ele. Hoje, é quase um ritual - tenha a pessoa 20, 200, 20 mil ou 2 milhões de seguidores. De uns tempos para cá, virou até meme dizer que ‘se não postar, não funciona’. A frase pode até não ser verdadeira, mas não está totalmente errada. De fato, a vacina em si pode não ser afetada por uma postagem, mas o alcance de uma foto ou de um vídeo pode ser inimaginável. 

Para especialistas de diferentes áreas, não há dúvidas de que algo tão simples quanto postar uma foto da vacinação tem efeito positivo. O principal deles é bem óbvio: estimular que mais pessoas se vacinem. Virou quase uma campanha informal. No início da semana passada, quando o Brasil já tinha ultrapassado os Estados Unidos no percentual de pessoas que receberam ao menos uma dose da vacina, quando considerada apenas a população adulta, as comparações foram inevitáveis. 

“O movimento antivacina encontra um obstáculo no Brasil que é o brasileiro amar: 1) coisas de graça em geral, 2) qualquer coisa que está todo mundo fazendo e 3) qualquer coisa que dá para tirar uma foto top e postar”, escreveu uma usuária, no Twitter, em uma publicação que recebeu mais de 130 mil curtidas. 

Estímulos Há até quem, como o criador de conteúdo Ismael, incentive mais pessoas a publicar sobre o mundo da vacinação. Falou até para a mãe, que pouco usa Instagram, fazer o mesmo.  Ismael compartilhou a foto que tirou logo após ser vacinado (Foto: Acervo pessoal) "Falei para ela tirar foto para as amigas verem. As amigas dela têm uma certa idade e tem muita gente que tem isso de querer escolher a vacina. Eu fico bem chateado e digo que a gente nunca escolheu vacina na vida", diz ele, que deve tomar a segunda dose de seu imunizante já em setembro. 

E avisa: pretende postar novamente. "Quero incentivar as pessoas a tomar a segunda dose. Não existe faltar à segunda dose. Sendo influenciador ou não, a gente influencia o outro. Então, quem puder postar, posta mesmo, ainda mais nessa situação atípica que estamos vivendo, numa época negacionista, com gente contra a saúde e a ciência", diz. 

Pesquisadores que têm acompanhado o avanço da covid-19 no Brasil veem atitudes como essa com bons olhos. Para o físico Vitor Mori, doutor em Engenharia Biomédica e pesquisador do Observatório Covid-19, ainda que seja difícil estimar o impacto desse movimento nas redes sociais, é um reflexo de uma adesão à campanha de vacinação. "Pesquisas mais qualitativas mostram que o ambiente no seu entorno influencia muito as decisões individuais. No Brasil, há uma cultura muito forte de vacinação, com décadas de sucesso do Plano Nacional de Imunização. Esse histórico faz com que brasileiros tenham confiança na vacinação e tenham dimensão dela como estratégia coletiva", avalia Mori. Antes da campanha de imunização começar, havia um medo muito grande de que o movimento antivacina tivesse ganhado força no Brasil. Esses grupos têm sido apontados como uma das principais razões para a vacinação contra a covid-19 ter estagnado em outros países onde eles têm mais alcance, como nos Estados Unidos. 

Mas a demanda dos brasileiros, na avaliação de Mori, pode ser um indício de que esse movimento foi superestimado no país. "Era por serem muito barulhentos e não exatamente numerosos. Nas pesquisas de antes, a gente não só não tinha as vacinas, como tinha muito diversionismo, como as falas do presidente (Jair Bolsonaro). Uma vez que as vacinas chegaram, aumentou muito a adesão", explica. 

Em diversos momentos, desde o ano passado, Jair Bolsonaro questionou não apenas a eficácia das vacinas, como também o interesse que os brasileiros teriam em se vacinar. Uma de suas falas que provocou maior revolta na comunidade científica foi quando afirmou, em dezembro do ano passado, que quem tomasse a vacina poderia "virar jacaré". Os jacarés, inclusive, viraram figuras repetidas em postagens. Vídeos e fotos de pessoas indo se vacinar vestidas de jacaré também viralizaram ao redor do Brasil, ao longo dos últimos meses.

Segundo o pesquisador, o efeito das postagens pode ser decisivo para quem ainda está hesitante ou tem algum tipo de receio da vacina. Ao ver amigos, parentes, conhecidos e colegas sendo imunizados, passando bem e se protegendo, a mensagem favorece o clima positivo em relação à vacina. 

"As pessoas querem ser parte disso. É bom tirar foto, comemorar. E para as pessoas que confiam na gente, somos influentes. Agora mesmo, falando em segunda dose, é importante mostrar que está tudo bem e que não tem nenhum efeito mais forte. As pessoas podem ficar preocupadas e é preciso ser transparente", opina.  

Campanha Foi bem o que aconteceu na família do antropólogo Everson Pereira, 34. Logo que as vacinas ficaram disponíveis, ele notou que uma pessoa de sua família estava um tanto resistente. Era comum que ela recebesse informações falsas sobre o imunizante tanto pelo Whatsapp quanto no Facebook. 

Ainda assim, era uma resistência específica à vacina contra a covid-19. Em outros momentos da vida, nunca houve uma movimentação nesse sentido."Acho que foi um fator importante ela começar a ver parentes se vacinando, amigos mais próximos, inclusive religiosos. Ela foi vendo que as pessoas não estavam tendo nenhum tipo de problema, que os efeitos colaterais eram fracos e começou a ter uma sensação de segurança comunitária", conta. Ao mesmo tempo, outros membros da família incentivavam a vacinação. Pesquisador vinculado à Rede de Covid-19 Humanidades, que reúne cientistas de sete instituições brasileiras, ele aponta que estudos na área da Antropologia costumam apontar que, para campanhas de vacinação terem sucesso, é preciso justamente que exista transparência, diálogo e confiança comunitária. 

Com tantos relatos de amigos - seja nas redes sociais ou mesmo em conversas diretas -, o familiar de Everson tomou as duas doses no momento certo de sua idade. No dia da segunda dose, inclusive, a pessoa chegou até a gravar o momento também. Ela enviou a algumas das pessoas da família e aos amigos mais próximos. 

"Em décadas mais recentes, essas campanhas de conscientização da vacinação vinham do governo, do ministério. Agora, a gente viu o oposto. Não apenas não tinha campanha de vacinação mais robusta como houve uma desinformação por parte de setores do governo. Isso reforça ainda mais a importância de criar esse senso de confiança", diz. 

Para dar exemplo, Everson também fez o mesmo: no dia 19 de julho, quando recebeu a primeira dose, publicou uma foto em suas redes sociais. "Foi tanto por um registro pessoal do momento histórico que estamos vivendo e por uma questão de pesquisa sobre a pandemia, mas principalmente para contribuir com esse senso de coletividade", explica.  Everson também compartilhou o registro de quando tomou a primeira dose, em julho (Foto: Acervo pessoal) Entre amigos Entre os amigos da produtora cultural Edmilia Barros, 35, as fotos da vacinação viraram uma forma de reunir o grupo que, desde março do ano passado, não consegue se ver pessoalmente. Desde o começo da pandemia, os 14 amigos que se conheceram nos tempos do Orkut só se falam pelo Whatsapp. 

Por isso, ela não apenas registrou seu próprio momento como fez uma montagem com fotos de todos e uma espécie de 'tabelinha' mostrando quantas doses cada um já havia recebido.  Edmilia (a segunda da primeira coluna à esquerda) fez uma montagem reunindo as fotos dos amigos (Fotos: Acervo pessoal) "Vi que algumas pessoas postaram e outras não. Então, falei: 'gente, vamos reunir aqui as fotos de todo mundo vacinando, porque eu queria fazer uma montagem com todos. Depois, fiz a tabelinha com o nome de todos e uma vacinazinha do lado para quem tomou uma dose e duas para quem tomou as duas", conta, referindo-se aos ícones de emoji. Por enquanto, apenas dois dos amigos têm a vacinação completa. Mas, esse movimento é importante até mesmo para vislumbrar que, em algum momento, a pandemia vai acabar - e o caminho é o da vacinação. "Acho que, quanto mais a gente postar, mais aumentam as chances de conseguirmos sensibilizar alguém. É fundamental", completa. 

Sua dose, por sua vez, veio no dia 22 de julho, quando sua idade foi autorizada. Nos dias anteriores ao anúncio, ela teve que trabalhar a ansiedade. Na véspera, nem dormiu bem de tanta ansiedade. "Eu tinha alguns planos de viagem e todos foram por 'coronavírus abaixo'. Esse momento representou tudo isso", lembra. 

A faixa etária seria contemplada à tarde, a partir das 13h. Por isso, saiu de casa às 11h. Passou no mercadinho, comprou um refrigerante e alguns salgadinhos e se preparou para encarar o que acreditava que seriam umas três horas na fila. Mas, ao chegar na Arena Fonte Nova, a surpresa: nenhuma fila. 

"Quando cheguei lá, vi que era muito cedo e ainda tinha pouquíssimas pessoas. Fui gravando os videozinhos e coloquei uma música de Adão Negro, que era bem a vibe desse dia", conta ela, que deve receber a segunda dose no dia 20 de outubro.  

Já a advogada Manuela Vanesca, 30, também registrou o momento por ser um tipo de conquista pessoal. Por ter medo de agulhas, ela havia tomado a última vacina quando tinha 11 anos. Os dias anteriores à liberação de sua idade vieram com uma angústia, além de uma sensação que misturava tensão e felicidade. 

As amigas de infância, com medo que ela desistisse, a acompanharam no dia. “Isso me ajudou muito. Fomos conversando no caminho e acabei não ficando tão apavorada. Sei da importância (de vacinas) mas realmente tenho muita dificuldade”, explica.

Sem a disponibilidade de vacinas de dose única na ocasião, ela tomou um imunizante de duas doses. Manuela decidiu publicar o momento da vacinação porque parte de seus amigos não acreditava que ela teria coragem. Para a advogada, foi uma forma de incentivar pessoas que, como ela, têm medo.  Manuela compartilhou um vídeo do momento em que foi imunizada (Foto: Acervo pessoal) “Amo ver as fotos das carteirinhas de vacinação. Penso que é um momento de felicidade que deve ser compartilhado. Dá uma esperança de que todo esse período esteja perto do fim. Contudo, evito ver os vídeos pois fico um pouco angustiada com as agulhas e a cara de dor das pessoas”, diz. Coletivo As fotos da vacina acabam, sim, sendo uma estratégia coletiva. A diferença é que elas são espontâneas, como explica a psicóloga Jeane Tavares, doutora em Saúde Coletiva e professora da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB). "Reflete muito a comunicação nas redes e reflete muito o nosso tempo. É uma forma de a população que tem informação sobre a eficácia das vacinas multiplicar essa informação", analisa. Para ela, isso é importante especialmente no contexto de desinformação que a vacinação enfrenta. Segundo a psicóloga, as estratégias de desinformação têm objetivos específicos, com estratégias convincentes. 

Ao mesmo tempo, também há o registro das gerações anteriores com o Zé Gotinha - e com o dia da vacinação sendo um dia 'de festa'. "Hoje, temos pessoas adultas que sabem que sua vida está bem por conta de vacinas. Então, esse pode ser um dia feliz (para elas). Se tivéssemos uma estratégia governamental interessada na imunização da população brasileira, essa memória afetiva seria resgatada. Deveria ser um momento de alegria, de encontro, de festa, principalmente com uma vacina que teve tantos problemas para chegar até nós", completa. 

Influência social, manifestos e protestos ajudam a popularizar as fotos

Esse movimento das postagens da vacinação pode ser entendido de diferentes formas. Para a pesquisadora Karla Freitas, doutoranda em Comunicação e Cultura pela Ufba, um dos vieses de análise é a identidade. "A gente se identifica à medida que socializa nossas ações, interações cotidianas. A gente se identifica com os comportamentos de outras pessoas e os toma como referências para os nossos", explica ela, que estuda o gerenciamento da emoção entre jovens adultos em plataformas de mídia social. Essas pessoas que servem de referência podem ser desde parentes e amigos até pessoas desconhecidas, ídolos e figuras públicas. Além disso, há um aspecto da influência social como base de um processo de mudança de comportamento. Ou seja: quando alguém observa a mudança do outro ou mesmo quando esse outro tenta persuadir alguém a uma mudança de comportamento - e isso funciona. 

Sem contar que, de forma geral, vivemos em uma cultura de exposição. "A gente é impulsionado a expor comportamentos, a fotografar, compartilhar, fazer com que outros nos vejam e a nos fazer percebidos", explica Karla. 

É difícil dizer se esse é um comportamento unicamente brasileiro. Esta semana, a imagem de uma brasileira que vive na Itália viralizou em redes como o Twitter e o Facebook. Na postagem, acompanhada de uma foto do momento de sua vacinação, ela dizia que o aplicador contou que era a primeira vez que alguém pedia para tirar foto ali. Além disso, em outros países, como a Holanda, é proibido fotografar o momento da vacinação. "A gente sabe que os brasileiros são, no mundo, um dos grandes usuários de redes sociais. Se nós estamos nas redes com mais frequência e mais constância, a tendência é que esses comportamentos de exposição também sejam mais frequentes", explica. Ela acredita que o fator de protesto ou de manifesto está presente em muitas das postagens dos brasileiros, como uma forma de resposta ao modo como alguns governantes têm agido diante das vacinas. No entanto, não dá para afirmar que não aconteceria, caso a vacinação tivesse sido estimulada por todos os canais oficiais, desde o início. 

"Não dá para afirmar que foi porque não teve uma campanha maior oficial. É até provável que, se houvesse uma campanha de vacinação e essa campanha estimulasse as pessoas a compartilhar imagens, essa adesão fosse ainda maior", analisa.