Sem regras para construções resistentes, Bahia tenta entender terremotos

Vários tremores foram registrados em cidades do estado na última semana

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  • Edvan Lessa

Publicado em 6 de setembro de 2020 às 09:07

- Atualizado há um ano

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(Foto: Reprodução) Somente olhando muito para passado e futuro, é possível tirar conclusões sobre o que está acontecendo em parte das bacias do Recôncavo e de Camamu. Cerca de uma semana após tremores de terra em série que balançaram mais de 40 cidades baianas, nove sismógrafos chegaram à região afetada, em meio a dezenas de casas danificadas e dois municípios em situação de emergência. Descobriu-se que, na verdade, há uma “colmeia” – ou muitas delas – e que os terremotos podem vir em enxames, sem que o estado esteja preparado para lidar com o fenômeno. 

Terremotos são imprevisíveis, mas há determinações técnicas aplicadas em locais onde há incidência deles, a exemplo das chamadas Normas Brasileiras (NBR). As NBR possuem inúmeras aplicações, de padronização de documentos a procedimentos de gestão, que são aprovadas pela Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) após consenso entre especialistas de determinadas áreas, incluindo a Geologia, campo que estuda abalos sísmicos .

A Norma Brasileira de sismos estabelece uma divisão do Brasil em áreas com potencial maior ou menor para terremotos, com base no comportamento do solo diante de um tremor. São definidas cinco zonas sísmicas (de zero a quatro), determinadas a partir de cálculos matemáticos que consideram a possibilidade ou não de ocorrências do tipo e eventuais impactos sobre as construções. Entretanto, para as estruturas na Zona Sísmica Zero, como é o caso da Bahia, não é exigida verificação anti-sismo, apesar da comunidade científica ter registro de mais de 300 terremotos no estado desde 1899.

“Todo o território da Bahia é considerado zona zero. Nela, nenhum requisito específico de resistência anti-sísmica é estabelecido”, explica o professor Sérgio Hampshire, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e coordenador da comissão da ABNT que trata desse campo. A norma considera quase nulo o risco de abalo no Brasil, baseado em referências internacionais sobre terremotos. (Fotos: Acervo Pessoal) A definição, diz Hampshire, foi estabelecida a partir de estudos sismológicos rigorosos e é bastante conservadora, tendo em vista normas estrangeiras similares. Sendo assim, apesar do enxame sísmico recente, cujo pico foi de 4.6 de magnitude na escala Richter, construções baianas como casas, comércios, pontes e barragens estão isentas de reforçar suas estruturas para lidar com terremotos.

Por outro lado, pesquisadores de variadas universidades alertam que as normas precisam de atualização. Além disso, consideram que ela não abrange elementos que caracterizam um  projeto de construção resistente a abalos sísmicos. O que obriga a buscar referências em padrões internacionais. Como não há normas obrigatórias na Bahia, ninguém precisa  pensar em terremotos para construir.  

Medo da barragem Em Cachoeira e em São Félix, no Recôncavo, 898 pessoas já haviam assinado, até a sexta-feira, uma petição criada quatro dias antes, exigindo vistoria completa e independente da usina hidrelétrica de Pedra do Cavalo. O intuito, destaca o documento, é prevenir a incidência de mais uma tragédia, com a esperança de obter ”informações confiáveis e completas”.

O cineasta Tau Tourinho, de Cachoeira, teme que um terceiro tremor represente risco de rompimento da barragem. “Tenho dormido mal por conta disso. Muita gente aqui está estressada, nervosa. Estamos com essa bomba que pode estourar a qualquer momento”, desabafa. Localizada entre os municípios de Governador Mangabeira e Cachoeira, no Rio Paraguaçu, a barragem é responsável pelo abastecimento de água para Região Metropolitana de Salvador, além de geração de energia, e foi construída pelo governo da Bahia, sendo inaugurada em 1985.

De acordo com a assessoria de comunicação da Votorantim Energia, que controla a usina, foi realizada uma nova inspeção nas estruturas na manhã do último dia 30. De acordo com a companhia, está em andamento uma nova verificação nas estruturas, realizada por especialista em segurança de barragens da própria empresa. “Foi constatada total normalidade nas estruturas e nos instrumentos, sem qualquer anomalia ou alterações”, informa o Grupo Votorantim.

Embora a barragem não esteja obrigada a cumprir normas anti-sismo, a assessoria da empresa informou que as estruturas de Pedra do Cavalo foram construídas e dimensionadas para suportar abalos. A hidrelétrica está sujeita, no entanto, à resolução 696 de 2015, da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), que estabelece critérios para classificação, formulação do plano de segurança de barragens e realização de revisão periódica em suas estruturas. O CORREIO solicitou o relatório enviado à Aneel, mas não recebeu resposta até o fechamento desta edição.

A resolução determina inspeção especial após ocorrência de evento excepcional, dentre os quais, abalos sísmicos. Um detalhe importante é que não há especificidade para a escala de magnitude do terremoto. Para quem vive perto da barragem, a hipótese de um rompimento faz parte da realidade atual diante da série de tremores de terra.

O Conselho Regional de Engenharia e Agronomia (Crea) da Bahia não se posicionou sobre a obrigatoriedade do cumprimento da norma. Segundo o geólogo Francisco Negrão, coordenador da Câmara de Geologia e Minas do Crea, a entidade julga só processos de atuação dos geólogos e engenheiros de minas do estado.

Fora do radar A Defesa Civil do Estado orientou as prefeituras das cidades afetadas que inspecionassem as habitações, mas nenhuma determinação foi emitida. Questionado sobre outras construções de grande porte ou de uso coletivo próximas ao epicentro do tremor em Amargosa, o órgão argumenta que, ao longo de 51 anos, nunca considerou a ameaça sísmica como um problema na Bahia.

“Nunca houve decreto de situação de emergência por tremor de terra. É a primeira vez, por conta da magnitude de 4.6”, afirma o superintendente da Defesa Civil da Bahia (Sudec), Paulo Sérgio Luz. “De agora para frente, vamos começar a repensar e discutir, fazer cursos de capacitação e orientar o que fazer no momento de tremor de terra e ao realizarem construções nesses municípios", completa.

Ponte do Funil Construída na década de 1970, a Ponte do Funil também é considerada uma das grandes estruturas que ligam o Recôncavo a Salvador, mais especificamente a Ilha de Itaparica ao continente, através da BA-001, e tem 660 metros de comprimento. A assessoria de comunicação da Odebrecht, responsável pela obra, informou que seria “dispendioso” resgatar registros históricos do empreendimento.

Diante da desobrigação com a Norma Brasileira, é improvável que naquele tempo houvesse a adequação da ponte a eventos sísmicos. Atualmente, uma outra Norma Brasileira, a NBR 7187/2020 fixa os requisitos que devem ser obedecidos no projeto, na execução e no controle das pontes de concreto. Estruturas bem projetadas e construídas, de acordo com as normas da ABNT que estejam na Zona Sísmica Zero, não oferecem risco estrutural a seus ocupantes, segundo Sérgio Hampshire, da UFRJ. “Considera-se que o limiar de risco sísmico seja a partir de uma magnitude de 5.0. O evento sísmico recente na Bahia ficou abaixo deste limiar”, aponta o professor e pesquisador.Danos O sismo de intensidade quatro, segundo outra escala, a  Mercalli, é sentido dentro e fora de casas. Pode acordar pessoas, vibrar louças, janelas e portas, além de ranger paredes. Em São Miguel das Matas, no Vale do Jiquiriçá, ao menos 78 casas foram danificadas, quatro delas sem condições de moradia. Segundo a prefeitura do município, uma equipe está em campo para avaliar outras famílias em situação de vulnerabilidade após os tremores. A estimativa é a de que sejam, no total. 100 habitações comprometidas.

Na sexta-feira, uma equipe de pesquisadores do Laboratório Sismológico da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, instituição que integra a Rede Sismográfica Brasileira (RSBR), chegou à Bahia para instalar nove equipamentos de monitoramentos de tremores em São Miguel das Matas, Amargosa, Mutuípe, Elísio Medrado, Brejões, Laje e Ubaíra, todos pegos pelo “enxame”.

Geóloga do Instituto de Geociências da Ufba, Simone Cruz, presidente da Sociedade Brasileira de Geologia (SBG), informou que deve emitir uma nota técnica, na semana que vem, com um diagnóstico completo e o contexto geológico das áreas afetadas pelos terremotos. Junto com mais cinco pesquisadores do instituto, ela integra uma comissão criada para estudar o caso de Amargosa. Enquanto a comunidade científica investiga as causas, a natureza faz a sua parte, sem avisar e sem pedir licença ou normas.

Perguntas e respostas Em que placa tectônica está a região afetada?  O Brasil encontra-se sobre a Placa Sul-Americana, bem como todo o subcontinente da América do Sul.

Houve alguma influência da Cordilheira dos Andes nos tremores?  Por enquanto, são só especulações sobre uma eventual influência andina ou dorsal oceânica sobre os abalos na região do Recôncavo.

O que são as bacias do Recôncavo e de Camamu?  Essas bacias são formadas por rochas sedimentares depositadas durante as fases iniciais de separação do Brasil com a África, há aproximadamente 130 milhões de anos.

Como se formaram as chamadas “falhas” que teriam provocado os terremotos e o que acontece nelas?  As bacias do Recôncavo e de Camamu se desenvolvem em um substrato de rochas cristalinas com idades mais antigas do que 2 bilhões de anos, nas quais foram formadas falhas e fraturas durante essa separação. A região afetada pelos terremotos na Bahia encontra-se no interior de uma placa tectônica. Essas falhas e fraturas podem estar sendo submetidas a tensões horizontais e ou verticais relacionadas com a dinâmica interna do planeta Terra e ativadas, com liberação de energia através de terremotos.