Shallow Now: Quantos Oscars merece o marketing da La Fúria?

Senta que lá vem...

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  • Hilza Cordeiro

Publicado em 22 de maio de 2019 às 20:09

- Atualizado há um ano

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Você deve ter visto nas redes sociais que a banda de pagode baiano La Fúria, conhecida por lançar músicas baseadas em memes, divulgou, nesta terça-feira (21), mais uma canção com a mesma fórmula: Shallow Now. A faixa é uma versão da versão ‘Juntos’, lançada na semana passada pela cantora Paula Fernandes, e que tomou conta da internet, do noticiário e da publicidade. Ambas derivam da composição ‘Shallow’, de Lady Gaga, que levou nada menos do que o Oscar 2019 de Melhor Canção Original.

A faixa de Paula Fernandes foi lançada no domingo (19) e, ao que parece, desaprovada nacionalmente nas redes pela incoerência do refrão “juntos e shallow now”. Um dia depois, a La Fúria anunciou que tinha uma versão pronta, solicitada por um internauta. No Instagram, o cantor da banda, Bruno Magnata, publicou o print do Twitter do usuário @edlpassos que escreveu: “A única coisa que pode salvar o Brasil , é a versão da banda La Fúria de Shallow” (sic).

A letra do lançamento não tem nada de diferente do que a banda já costuma fazer e manteve-se no padrão putaria sem limites, pelo qual é orgulhosamente reconhecida. Além da expressão shallow now, rabetão, senta e quica são algumas das palavras que constam na mais nova obra da quebradeira baiana. Neste caso, o que impressiona, entre outras coisas, é a velocidade de produção da música, tão rápida quanto a indústria dos memes.

Essa rapidez faz parte do processo de ‘timing’, de estar na pauta das conversas das pessoas e das notícias enquanto o Shallow Now continua sendo o assunto. Dessa maneira, a banda alimenta o meme e se retroalimenta dele ao mesmo tempo, estendendo sua duração factual enquanto captura a atenção do público, povoando seu imaginário antes que outra coisa vire o novo centro das discussões. Pois é, o pagode baiano tem marketing. E a La Fúria sabe bem quem é o seu público-alvo, em sua maioria formado por jovens, estes, por sua vez, grandes consumidores e produtores destas pérolas digitais. Não é a primeira vez que a banda surfa nos memes. Antes, já havia lançado as também polêmicas Fábio Assunção, Bettina, Vovô Urso (Dança da Bruna Marquezini), Jenifer no Paredão e Teile & Zaga, que tiveram repercussão semelhante.

Com elementos como pornofonia, nonsense, refrão chiclete e coreografias mirabolantes, as músicas lançadas nesta estratégia ganham mídia espontânea, tutoriais para ensinar a dançar e, claro, novos memes. Depois de lançada, a música foi ironicamente reescrita para ‘Xelounau’. Todos esses rearranjos estão de acordo com a origem da palavra meme, que quer dizer imitação. Da sua maneira, é exatamente isso que Bruno Magnata faz: a versão da versão da versão. O meme é um mito e ganha nova vida quando passado adiante. É a informação adaptada e readaptada para diversos contextos, quase sempre humorísticos.

O problema é que a La Fúria (e mesmo o próprio mercado publicitário) adotou essa tática como um de seus principais instrumentos de diálogo com a sociedade. Se, por um lado, o meme gera reconhecimento, empatia e diversão, por outro, é também uma fórmula fácil. Ao perseguir estas tendências tão espontâneas quanto efêmeras, a banda compromete o rigor das letras da canções, que é sempre a primeira crítica estética quando se trata do gênero em questão.

Mas, o pagode baiano também é business e interessam os números. Em duas horas de lançamento, o Instagram de Bruno Magnata ganhou três mil seguidores, saltando de 672K para 675K. Sem canal oficial no Youtube, boa parte da produção artística da banda está distribuída em portais e também na conta da Sacra Produções, que gerencia a carreira deles. Somente neste canal, são quase 29 milhões de visualizações se somados todos os vídeos.

O pagode tem uma relação direta com o mercado musical baiano e os seus produtores ainda não encontraram um modelo de levá-lo expressivamente para fora do estado. E neste ponto a La Fúria se destaca, extrapolando as malas dos carros e driblando a censura das rádios e TVs que não permitem a veiculação de suas letras na programação. Como dizem os próprios fãs da banda, quem tem limite é município.

A estratégia adotada com base no hype digital diferenciou a banda das demais e promoveu um engajamento para fora dos limites soteropolitanos, dialogando com esse espaço externo que ainda não foi alcançado. E, embora o pagode baiano seja parte importante da valorização da cultura negra em Salvador, é preciso levantar inúmeras questões sobre a afirmação identitária que a La Fúria vem promovendo, o que seria assunto para outro texto. O que ainda cabe ressaltar aqui é que, para o bem ou para o mal, esse fenômeno reflete um efeito virtual, que não passa apenas pela distribuição das obras, mas principalmente pela produção e consumo de produtos culturais. O acesso à internet não tem 100% de cobertura e gratuidade no Brasil, mas é inegável o quanto ele foi ampliado pelas tecnologias mobile em smartphones. Isso quer dizer que a periferia soteropolitana está integrada neste processo memístico e conectada no percurso informativo.

Lembremos que não só Tom Zé e Tiago Iorc observam as redes. Os álbuns Tribunal do Feicibuque (2013) e Troco Likes (2015) podem até ter uma centralidade na aprovação e no debate da qualidade musical, mas existe um público produtor e consumidor fora dessa redoma e que está aí para disputar espaço na discussão. E aí, com qual versão brasileira de Shallow você acredita que Lady Gaga compartilharia seu Oscar?

Texto originalmente publicado  no Linkedin e replicado com autorização do autor