Cadastre-se e receba grátis as principais notícias do Correio.
Kátia Borges
Publicado em 1 de janeiro de 2022 às 07:00
- Atualizado há 2 anos
Na contramão da polêmica das redes sociais em torno da comédia dramática Não Olhe para Cima, de Adam McKay, toda a minha atenção se concentrou nos últimos dias em rever uma película japonesa de 2002 dirigida por Kai Kumai, a partir do primeiro tratamento inconcluso do roteiro deixado por Akira Kurosawa, que morreu em 1998. Lógico que assisti Não Olhe para Cima e que tenho uma opinião pessoal sobre o filme. Nem tão boa ou especializada quanto a de milhões de comentaristas ferozes do Facebook, que se digladiam por toda e qualquer coisa e por nada. >
Muitos comparam Não Olhe para Cima com Marte Ataca!, de Tim Burton, lançado no circuito comercial em 1996 e considerado bem melhor. Eu diria, em meu humilde e assumido desconhecimento cinéfilo, que há mesmo um paralelo entre eles, só que em 2021 somos nós os marcianos cínicos. Vai ver naquela época ainda não nos olhávamos no espelho, narcisos e sonsos. Talvez extraterrestres malvados nos observem, nesse processo de autodestruição galopante, e estejam perplexos. >
Por uma razão pessoal, como nos quadros de Jorge Selarón que nunca esqueço, expostos na antiga sorveteria da Ribeira, foi Sob o Olhar do Mar, o título em português do filme de Kumai, que mais me emocionou no final de 2021, vivendo intensamente na Bahia, devastada não pela alegria, mas por uma tragédia climática sem precedentes. Como os números são atualizados a cada dia, o que temos hoje são 151 cidades em estado de emergência, 25 mortos, mais de 90 mil entre desabrigados e desalojados. >
Foi nesse contexto, conferindo nos telejornais os rastros de destruição no interior do estado, que busquei rever o longa japonês. Veja que não me refiro aos problemas ambientais ou de infraestrutura dos municípios baianos, pois é fato que tal volume de chuvas causaria danos em qualquer circunstância, por mais afortunada. O que me levou ao filme de Kumai, além de uma deriva criativa pródiga na conjugação de referências aleatórias, foi sua temática mais profunda: a natureza e sua fúria. >
Ambientado no século 19 em uma cidade costeira do Japão, sua trama mostra o cotidiano de um prostíbulo, interrompido pela chegada de um samurai em fuga e, em seguida, devastado por um temporal. Claro que o filme foi massacrado pela crítica pela simples razão de não ser um Kurosawa. Digamos que houve certo apagamento desta última película de Kumai, morto em 2007. E, muito embora não seja nenhum Kurosawa, Kumai foi premiado em 1989 no Festival de Veneza pelo filme A Morte do Mestre do Chá, uma pequena pérola documental sobre a cultura japonesa. >
Em Sob o Olhar do Mar, o temporal interrompe bruscamente os sonhos românticos de O-Shin (Nagiko Tôno), que vê nos homens a sua única possibilidade de mudança. Quando horizonte já não há, ela contempla do telhado, único lugar ainda seguro, o nível da água subindo e subindo, engolindo a cidade e seus moradores. A cena melancólica e a fotografia impecável de Kazuo Okuhara fazem deste filme uma metáfora sobre o nosso tempo, para mim, bem mais efetiva que Não Olhe para Cima. >
Kátia Borges é escritora e jornalista>