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Kátia Borges
Publicado em 3 de agosto de 2019 às 05:00
- Atualizado há 2 anos
Lembro quando éramos crianças e pousava uma Esperança perto. O desejo de tocar aquele verde, reter entre os dedos suas pequenas asas quase transparentes, roubar o que é beleza de sua natureza livre. É sorte, dizem, quando ela invade a nossa casa, voando baixo e fixando-se em alguma parede. Desses minúsculos brindes com que a vida insiste em se mostrar aos nossos olhos em toda a sua singularidade.>
Para os pragmáticos, apenas um inseto, um acinte, a nada serve em seu ciclo vivo de Verão. E nem cigarras são, em seu canto idem. É de cedo que se aprende o que é mister. Lembro quando éramos crianças e pousava uma Esperança perto. Minha mãe vinha correndo protegê-la de nossas mãos. E então nos ensinava sobre a fragilidade de tudo aquilo que vive em camuflagem de beleza e existência simples.>
Olhar é coisa que em geral se aprende com pai e mãe. Como no conto de Eduardo Galeano em O Livro dos Abraços. O pedido aflito do menino diante do mar, sua urgência ingênua em apreender a imagem daquele gigantesco monstro. Até onde alcança esse corpo que se esparrama na distância? São tentáculos brancos que nos ameaçam, suas ondas? Não recordo por inteiro o meu primeiro encontro com o azul.>
Morávamos perto da Praia do Cantagalo e eu tinha um avô português chamado Lídio. Ele era exatamente como eu, pequeno, ensimesmado e triste. Gostava de cozinhar. Pouca memória, porque foi curto o tempo. Ele me apresentou ao mar. A impressão que tive da areia molhada arranhando a pele, de que a água alcançava toda forma, e assim nos seguia até em casa, e para sempre, preso ao corpo (Ave, Clarice!).>
Frequentemente, produzo polaroides sentimentais daquilo que vejo. Da pequena casa onde morei, lembro as tintas de cores exóticas, sobras da refinaria de petróleo (Ah, Adélia!), o plástico que sustentava a chuva no Inverno, a rua simples que se erguia luxuosa a cada segunda quinta-feira de janeiro. Lembro também que a vida parecia em muito com um beco estreito, recuo de um mundo de muros, permitia a livre criação de universos. .>
Da memória, pequenas hortas. O brotar dos seios. Ocultar, da racionalidade, as dores que não interessam. Demolir castelos onde princesas mortas esperam príncipes encantados. E as Esperanças. Já repararam como elas somem no Inverno? Amar o verão, no qual retornam, com seu viço verde e inutilidade de poesia. Amar com toda força Galinha Branca, a mendiga da infância, tão violenta em seu desamparo.>
Amar com toda força cada um dos penduricalhos que Galinha Branca carregava em suas trouxas. Flexionar o verbo e os dedos. Amar até mesmo o improvável, aquilo que se distancia de tal modo que, na distância, fica próximo. E só então se pode tocá-lo com os olhos. Apreender o imponderável, essa concha. Dentro dela, o mar pede escuta. Compreender que toda Esperança é frágil. Nela não se toca.>