Sobre andar em silêncio e a estagnação barulhenta do mundo

Linha Fina Lorem ipsum dolor sit amet consectetur adipisicing elit. Dolorum ipsa voluptatum enim voluptatem dignissimos.

  • Foto do(a) author(a) Kátia Borges
  • Kátia Borges

Publicado em 24 de novembro de 2018 às 05:14

- Atualizado há um ano

. Crédito: .

“Tu queres sono: despe-te dos ruídos”. Ana C.  

A ideia é andar. Vencer em silêncio poucos metros até que se tornem quilômetros. Promover uma revolução interior pelo movimento contra a estagnação barulhenta do planeta. Mas tudo se resume na realidade a levantar bem cedo, calçar os tênis e encarar o trânsito. Há carro, moto, gente e cachorro. Raramente se vê um gato acordado e dando pinta no passeio. Se venço o sono, já estou no lucro.  

Quando a necessidade de estar em silêncio grita mais alto do que qualquer palavra e nos entrincheiramos na resistência, andar é como jogar seu corpo no mundo. “Desaparecer de si: uma tentação”, diz o título de um dos livros de David Le Breton, o sociólogo francês que prega no deserto, e na contramão do caminhando e cantando, que o grande barato contemporâneo é caminhar pensando.

Tenho pensado no silêncio como resistência desde que li uma entrevista viralizada de Le Breton e uma análise dos contos de Raymond Carver chamada “Calando para resistir”. Um retiro de meditação Vipassana me tenta em final de novembro. Nove dias sem falar uma única palavra. “O paraíso”, descrevo para a amiga incrédula, com quem animadamente converso. Não, não é silenciosamente que penso. 

Mas, sobre o silêncio, coincidem alguns pensamentos. O que vem na música de Arnaldo Antunes faz eco com o da medicina ayurveda. Para os dois, é o barulho que nos interrompe, não o contrário. O silêncio veio antes de tudo, ele está no cerne do que somos. Mas a humanidade é tão louca que inventou até uma máquina geradora de ruídos e aplicativos que ensinam como entrar em estado meditativo. 

Deste modo podemos ter a ilusão de comprar o silêncio, aquele que conectamos a alguns ruídos. Forjamos o barulhinho bom da chuva caindo no nosso bolso,  produzimos o som do não-som para embalar uma noite de sono. Atualizando as definições, no Aurélio e no Caldas Aulete, não há exatamente um ponto pacífico sobre o que seja, apenas oito ou nove sinônimos que deslizam entre taciturnidade e calma. 

O certo é que não há silêncio físico absoluto. Ao menos, não enquanto o corpo humano está vivo. Os sons dos movimentos da nossa respiração, sozinhos, alcançam em média 10 decibéis. Assim, ainda que involuntariamente, fisicamente, somos uma usina de pequenos barulhos e os escutamos todo o tempo. O organismo é uma orquestra de bordo. Nem sempre afinada, segue tocando até que nada reste do Titanic. 

Para pesquisas tecnológicas na área de microfones e fones de ouvido, gigantes como a Microsoft criaram câmaras anecóicas, laboratórios com níveis tão baixos de ruído que se pode escutar até o esfregar do couro cabeludo no alto do osso zigomático. Estar em silêncio quase absoluto é tão enlouquecedor que o recorde lá dentro não passa de 45 minutos. De certo modo, barulho produz orientação e zonas de conforto.

Não é exatamente uma surpresa que a delicadeza de algumas coisas possa ser tão cruel para o corpo humano. A tortura chinesa, por exemplo, consiste em fazer alguém ficar imobilizado sob uma gota intermitente de água que lhe cai na testa por semanas inteiras exatamente no mesmo ponto. Penso que o silêncio seja como descreve o poema de  Wislawa Szymborska: a simples pronúncia da palavra é capaz de destruí-lo.