Sobrevivendo a nós mesmos

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  • Paulo Sales

Publicado em 21 de fevereiro de 2022 às 05:04

- Atualizado há um ano

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São da poeta norte-americana Louise Glück os seguintes versos: “Como pesa a minha cabeça / Cheia de passado / Será que tem espaço / Para o mundo penetrar?”. Eles me fazem lembrar de minha mãe. Sua mente atulhada de lembranças de outros tempos, represadas como se não pudessem escorrer pelo ralo da memória. Lembranças vívidas como uma coceira ou um tropeção, refratárias ao presente, infensas ao futuro. Sinto por ela um amor infinito e uma enorme compaixão.

Em contraposição, os versos me lembram também de uma tia, que viu minha mãe nascer e hoje, aos 93 anos, diz que não se sente tão velha. Tateia com sua visão precária os anos que lhe restam sem perder o senso do porvir e o desejo de permanecer. Eu a admiro. Seu humor é uma fortaleza. Continuo lendo os versos de Glück: “A vida, disse minha irmã, / é como uma tocha que agora passa / do corpo para a mente.”

Tenho 52 anos e a velhice é para mim ainda um enigma. Um território que vislumbro, mas me é desconhecido. Como um país visto do outro lado do rio, fronteira que a qualquer dia devo ultrapassar. A tocha ainda não foi passada. Hoje, só desejo a mim mesmo um outono sem sobressaltos, um tempo de colheita que me lance sem medo no inverno.

Leio Homo Deus, de Yuval Noah Harari. Segundo ele, estamos próximos de nos tornar “amortais”. Uma questão de 100, 200 anos ou talvez menos. Viveremos indefinidamente, colhendo os frutos de um progresso científico que nos transformará em algo que sequer conseguimos conceber. A ideia do homo sapiens convencional, vulnerável como uma formiga, se tornará obsoleta. Mas quais seriam as implicações dessas mudanças?

Harari reflete: “Nós mortais arriscamos diariamente nossa vida porque sabemos que ela, de um jeito ou de outro, vai acabar. Assim, saímos em jornadas no Himalaia, nadamos no mar e participamos de outras ações perigosas, como atravessar a rua ou comer fora. Mas, se acreditarmos que podemos viver para sempre, seremos loucos se apostarmos com o infinito.”

Ele prossegue: “Agora, tentemos imaginar uma pessoa com 150 anos de idade. Se se casasse aos 40, ela ainda teria 110 anos pela frente. Seria realista esperar que um casamento dure 110 anos? (…) Uma pessoa que tem dois filhos aos quarenta anos terá, quando completar 120, apenas uma lembrança remota dos anos que dedicou à sua criação – um episódio menor em sua longa vida. Difícil dizer que relação pais-filhos poderia se desenvolver em tais circunstâncias.”

Numa troca de mensagens com amigos sobre essas previsões, ambos não se mostraram empolgados com a possível sobrevida. Um deles disse: “Estaria feliz em ver meus três filhos encaminhados. Daria uma alegre banana para o mundo”. O outro foi por um caminho semelhante: “Prefiro pensar na vida com ciclos, começo e fim, numa visão mais drummondiana”. Até mesmo eu, um entusiasta da vida eterna, me senti tentado a rejeitar a ideia.

Porque penso, hoje, que temos o nosso tempo e a ele pertencemos. Adoraria estar daqui a 100 anos com meus tataranetos tomando um vinho à beira do Sena, recordando com nostalgia a pré-história que foi o século 20. Mas que Sena seria esse? Que tataranetos seriam esses? O mundo provavelmente me tragaria como a um inseto, e eu me veria desnorteado e repleto de memórias que mal compreenderia.

A chave de toda essa conversa talvez esteja num artigo de João Pereira Coutinho, publicado recentemente na Folha: “Nas discussões sobre o prolongamento da vida, tudo é visto de uma perspectiva individual, como se o estado do corpo encerrasse o debate. (…) Mas os indivíduos precisam de outros indivíduos. E, entre esses, precisam dos seus indivíduos. Uma longevidade que não seja democrática é uma condenação à solidão.”

Coutinho prossegue: “De que vale conhecermos novos mundos quando perdemos o único mundo que nos tornou reconhecidamente humanos? Viver até aos 150 ou 200, tudo bem, desde que eu possa levar alguma bagagem. Velhos amigos. Amores presentes. Irmãos, filhos e netos. De que vale matar a morte quando não podemos matar saudades?”. É a resposta definitiva.