Sombras ambulantes

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  • Paulo Sales

Publicado em 12 de outubro de 2020 às 05:05

- Atualizado há um ano

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Leonard Cohen morreu em 2016, aos 82 anos. Parecia estar em paz consigo mesmo diante do fim próximo. Sua antiga musa e companheira, Marianne Ihlen, havia morrido meses antes, e ele lhe enviara a seguinte mensagem: “Bem, Marianne, chegamos a esta época em que somos tão velhos que nossos corpos caem aos pedaços; acho que a seguirei muito em breve. Saiba que estou tão perto de você que, se estender sua mão, acredito que poderá tocar a minha. Você bem sabe que sempre a amei por sua beleza e sua sabedoria, mas não preciso me estender sobre isso, já que você sabe tudo. Só quero lhe desejar uma boa viagem. Adeus, velha amiga. Todo o amor, a verei pelo caminho.”

É uma mensagem tão pungente que nos faz invariavelmente voltar a essa história que teve início na ilha grega de Hydra, onde ambos viveram um idílio de sol, sexo e liberdade. Marianne havia acabado de ser abandonada com um filho pequeno pelo marido, e ambos foram morar com Cohen numa casinha simples, sem água encanada, no alto de uma colina. Mantiveram-se juntos por seis anos. “Bem, você sabe que eu amo viver com você / Mas você me faz esquecer muitas coisas / Eu esqueço de rezar para os anjos / E os anjos esquecem de rezar para nós”. Esses são versos de So Long, Marianne, a linda elegia que eternizou o romance.

Tenho ouvido com frequência as canções do poeta canadense nestes dias de sol, trabalho e solidão maranhenses. Sobretudo as canções de amor, sedução, fé e perdão do seu primeiro álbum, Songs of Leonard Cohen. Nele desponta outro canto de louvor a uma mulher, Suzanne. Que canção. Que versos. Que grande gênio foi Cohen. E me faço a pergunta: como tudo pôde passar tão rápido? A iniciação ao amor na Grécia, a consagração como artista, a maturidade e, por fim, a despedida. Tudo que ele viveu – e que permanece incólume na sua obra – agora pertence ao passado, esse vasto território feito de saudade e esquecimento.

Penso nos muitos momentos da minha própria vida que também estão encerrados nesse território. Vem à mente uma noite particularmente feliz com meus pais, minha mulher e minha filha numa casa de praia, em janeiro de 2003, sete meses antes do meu pai morrer. Aquela noite tão plena de lua cheia, regada a vinho, afeto e boas conversas acabou sendo involuntariamente o prenúncio de tempos duros. Surgem à tona também as viagens, só nós três, rumo às cidades eternas do velho continente. O olhar de assombro e fascínio, como se tomados por sucessivas epifanias diante da beleza suprema.

Confesso o temor de que o passado um dia chegue como uma lava de vulcão, descendo cada vez mais rápido até cercar o que resta de futuro e por fim engoli-lo. De me dar conta de que não haverá mais viagens, afeto e descobertas para além dos que já desfrutei. Cohen ao menos deixou registrado o seu idílio grego em versos que provavelmente serão ouvidos por mais um século. Mas, e quanto a nós, pobres anônimos? O que vai restar de todas essas histórias cheias de som e fúria e sem qualquer sentido que representam a trajetória de cada um? Apenas uma sombra ambulante, para continuar nas metáforas shakespeareanas.

Por vezes sou tomado por uma sensação de imaterialidade. O vento castiga os coqueiros, a areia se movimenta como uma cobra. Testemunho tudo isso entre maravilhado e enfastiado, como se não estivesse presente, como se essas imagens prescindissem do meu olhar, da minha presença, da minha vontade de traduzi-las em palavras numa crônica. O fato de pesar sobre a Terra não faz a menor diferença para o seu curso. Sou como um riacho recém-extinto, uma boneca esquecida por um menina que cresceu, uma folha amarela varrida pela brisa para o bueiro. So long.