Sororidade é entender ou gostar de todas as mulheres?

Sororidade é um conceito importante para o feminismo e significa, num primeiro olhar, não julgar outra mulher e sempre protegê-la do machismo

Publicado em 23 de junho de 2019 às 05:00

- Atualizado há um ano

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A sororidade é uma utopia na atualidade

Para responder a essa pergunta, inicialmente, apresento a etimologia e história da sororidade, e, em seguida, argumento porque esse vocábulo não atinge todas as mulheres, nem procura gostar e entender a amplitude e diversidade entre os grupos femininos. A palavra ‘sororidade’ é derivada do latim ‘soror’, irmã. 

Em inglês utiliza-se a expressão ‘sisterhood’ para definir essa conexão entre as mulheres. ‘Sorority’, nos Estados Unidos, refere-se a agremiações estudantis femininas. No Brasil, estamos acostumada(os) a ver o vocábulo sororidade aplicado a freiras.

Na história, a palavra tem sido usada para contrastar com o termo ‘fraternidade’, a união de irmãos, no masculino, tornando binária a relação entre as duas concepções. Além disso, o lema da Revolução Francesa ‘igualdade, liberdade e fraternidade’ exclui as mulheres.

No feminismo, a sororidade tem como origem os grupos de consciência da década de 1970, na Europa e Estados Unidos. No Brasil, o diálogo entre mulheres com conotação política teve início com a volta das exiladas. O foco nestes países tem sido os direitos reprodutivos e contra a violência, principalmente doméstica, unificados sob a luta contra o patriarcado.

A pretensão universalista da sororidade, contida no termo ‘todas’, escamoteia as diferenças e pluralidade das mulheres. Por exemplo, existirá irmandade entre patroas e empregadas, brancas, negras e indígenas, ou prevalecem relações desiguais? O direito ao aborto legal e seguro é consenso entre todas as mulheres?

Verifica-se que, teoricamente, a solidariedade feminina aproxima-se do que foi chamado de ‘maternalismo’, com ênfase no cuidado como característica de todas as mulheres. Por outro lado, a feminitude homogênea torna as mulheres cúmplices entre si, submetidas a uma ordem masculina. No entanto não responde às diferentes orientações sexuais, das lésbicas às travestis e transexuais femininas, entre outras discriminações.

Concluindo, a sororidade é uma utopia difícil de ser captada na realidade atual. É uma visão idealista, que invisibiliza os múltiplos grupos de mulheres e as relações de poder entre as próprias mulheres.

Sonia Wrigth é professora doutura do Bacharelado de Estudos em Gênero e Diversidade da Ufba

Sororidade: do que trata este conceito?

A palavra sororidade tem sido cada vez mais utilizada em diversos lugares e por pessoas dos mais variados espectros sociais, não se restringindo aos espaços e discursos exclusivamente feministas, como outrora. Seu uso tem se espraiado e sua apropriação tem gerado discursos diversos, que vão desde reivindicações legítimas pela união das mulheres em torno de lutas emancipatórias, até falas ambíguas, contraditórias e/ou controversas sobre uma possível irmandade absoluta e universal entre pessoas do sexo feminino, independente das contradições de classe, raça e de outros marcadores sociais. Ou seja, a palavra sororidade tem estado cada vez mais em cena, seja como insígnia, slogan ou termo novo que muitas pessoas consideram interessante usar. Mas, afinal, do que se trata e o que de fato significa essa tal sororidade?

Conceitualmente, o uso da palavra sororidade já tem mais de 40 anos no campo feminista, uma vez que a norte-americana Kate Millet o invocou, em plena década de 1970, com vistas a construir uma ‘sisterhood’ feminina para fortalecer a luta pela “liberação das mulheres”. Neste contexto, e influenciada pelo chamado marxista “trabalhadores de todo o mundo, uni-vos”, o realmente feminismo pretendia uma união universal das mulheres, desconsiderando aspectos outros como classe, raça, etnia, dentre outras formas de diferenciação e até mesmo divisão social.  

Duas décadas depois, a antropóloga mexicana Marcela Lagarde tornou o conceito ainda mais familiar para a perspectiva latino-americana, definindo-o como um pacto, uma aliança entre mulheres de distintas experiências e perspectiva sociais, a fim de trabalharem juntas contra as mazelas do patriarcado. Trata-se, portanto, de uma proposta política baseada numa ética feminista, em que a união das mulheres não se dará em termos definitivos, mas pontual e estratégico, respeitando-se as diferenças entre as mesmas, mas reforçando seus objetivos comuns.  

A contribuição de Marcela Lagarde permitiu perceber os limites e as possibilidades de uso teórico e prático deste conceito, pois o mesmo não pode ser visto como uma mera associação acrítica de mulheres, mas como um acordo, um pacto que leva em conta vivências comuns, decorrentes da consciência de gênero, isto é, de uma condição social e histórica compartilhada. Esta perspectiva é interessante porque adverte que o conceito de sororidade não deve ser apresentado como sinônimo de solidariedade ou irmandade entre mulheres e ponto, já que não é isto que os feminismos propõem. 

Neste contexto, a sororidade se apresenta como um pacto entre mulheres, mas um pacto de caráter diferenciado, que visa a transformação das relações destas entre si, a fim de lutar contra a desigualdade de gênero, ou seja, uma articulação capaz de transformar as relações de gênero desiguais, assimétricas, desumanas. Portanto, a ideia de sororidade está vinculada ao campo da ética e da política feminista. Diz respeito a uma visão de mundo e às possíveis ações para que a subalternização das mulheres seja superada. Requer união, compartilhamento de ideias, compreensão de realidades, percepção de experiências comuns, apoio mútuo.

Por isso, pode se dizer que a sororidade é uma ética e uma política que informa e orienta a ação das feministas e se manifesta de várias formas, dentre elas, em campanhas públicas realizadas em todo o mundo, tais como: “Nenhuma a menos” (para enfrentar a violência de gênero contra as mulheres); “Irmã, eu acredito em ti” (para fortalecer a denúncia contra violência sexual, por exemplo), “Uma sobe e puxa a outra” (para construir ações de empoderamento coletivo), “metoo” (para demonstrar que as violências contra as mulheres não são casos isolados); “mexeu com uma, mexeu com todas” (para demonstrar a unidade e a empatia entre as mulheres diante das opressões e violações). 

O pacto que a sororidade favorece propõe reconhecer a cada uma como titular de direitos, como merecedora de respeito, como interlocutora social, sem negar as diferenças de classe, de raça, de nacionalidade, de religiosidade existentes entre as mulheres.  Por isso, este conceito tem sido reivindicado para impulsionar lutas contra todas as formas de exclusão e de violência contra as mulheres, favorecendo ainda a organização e à mobilização feminina. 

Apesar do exposto, algumas pessoas consideram dispensável um conceito como este, argumentando que bastaria usar o termo solidariedade. Ocorre que este termo é amplo demais e não trata da especificidade de gênero que se refere a todas as mulheres pela sua condição de mulher. Assim como o conceito de dororidade, cunhado pela escritora e feminista negra Vilma Piedade, para se referir a experiências e dificuldades que somente as mulheres negras vivenciam em face dos impactos do racismo. Segundo esta autora, dororidade seria uma espécie de cumplicidade entre mulheres negras que compartem dores e experiências de exclusão e opressão próprias e específicas no seu existir histórico. 

A sororidade é precisamente um termo reivindicativo, de caráter eminentemente político, que não daria para ser expresso pela palavra solidariedade. Até porque, como se observa a cada marcha de mulheres, a cada oito de março, centenas de milhares de mulheres saem às ruas para denunciar preconceitos, discriminações e violências, além de reivindicar direitos específicos para a metade feminina da humanidade, pugnando por uma sociedade mais justa, democrática e igualitária em termos de gênero. 

Mas cabe perguntar: a sororidade exige que estejamos todas sempre de acordo com todas as mulheres em todas as circunstâncias? Esta é uma questão que precisa ser elucidada, pois isto não somente seria impossível, como é até mesmo indesejável do ponto de vista feminista. Até porque não é somente o gênero que constitui a experiência das mulheres, outros marcadores, como classe, raça, etnia, geração, religião, etc fazem parte da complexa realidade de todas nós. Portanto, inexiste possibilidade de estarmos de acordo, o tempo todo, com as posições políticas e visões de mundo de todas as mulheres, porque somos diversas e até mesmo em nossa própria trajetória mudamos bastante ao longo do tempo. Ademais, ser feminista não significa “amar todas as mulheres” e muito menos “odiar todos os homens”.

Significa defender os direitos humanos para todas e lutar por relações de gênero mais igualitárias e justas em determinado contexto social e histórico. Trata-se, por exemplo, de combater discursos hegemônicos tais como aqueles que culpabilizam as vítimas de violência sexual. E, em caso de haver mulheres fortalecendo estas narrativas, posicionar-se firmemente contra tais discursos, ainda que venham de outras mulheres, e ter empatia para com as mulheres que se encontram em situação vulnerável, é dever de toda feminista. Não significa, portanto, blindar as mulheres da crítica, sobretudo as que tem privilégios ou ocupam espaços de poder, mas evitar fazer críticas que se relacionem com sua condição de mulher. 

Em que pese algumas pessoas argumentarem que a sororidade deve ser pautada em relações de amizade, esta não é a regra. Nem mesmo é condição para a sororidade acontecer, pois a perspectiva da empatia, da aliança e da união não existe a amizade como condição fundamental, posto que é possível e necessário ter uma postura de sororidade para com as mulheres dos mais distintos lugares e das mais distintas visões de mundo, desde que estejam sendo atingidas pelo jugo do patriarcado e de outros sistemas que com estes se relacionam. 

É a sororidade, enquanto ética e política feminista, que nos faz protestar contra abusos e violências cometidas contra mulheres com as quais não temos a menor afinidade política ou ideológica, mas entendemos se tratar de um ser humano cujos direitos são violados por compartilharem conosco uma identidade de gênero e uma condição socialmente desvalorizada. Vale destacar, ainda, que a solidariedade pode ser vista como uma atitude ou relação que, geralmente, mantém a realidade como está, ao passo que a sororidade visa exatamente a sua transformação. Sororidade pode ser traduzida como uma relação de apoio, confiança, ajuda, mas também como torcida, articulação, colaboração e luta coletiva. 

De toda sorte, a ideia de sororidade será sempre emancipatória, razão porque não se pode reivindicar sororidade a favor de uma mulher que esteja em privilégio em detrimento de uma outra que está sendo atacada, vulnerabilizada ou culpabilizada por lutar por seus direitos. Eis porque não há que se falar em uma união universal de todas as mulheres o tempo todo, independente das circunstâncias e de outras experiências que as mesmas possam viver em razão da raça, da orientação sexual, da religião, da classe, de algum tipo de deficiência, do território onde vive.

Enfim, o conceito de sororidade pode e deve ser reivindicado, ainda mais nos dias atuais onde o uso das redes sociais favorece a ampliação de todas as lutas, porém, não podemos perder de vista os riscos de fragilidade do seu caráter emancipatório e empoderador, vez que tem sido cada vez mais invocado de maneira identitária ou interrelacional, sem que haja maiores reflexões e mobilizações em termos de mudanças estruturais. Sabemos que transformações ideológicas e valorizativas são importantes, mas não são suficientes, é preciso transformar as estruturas sociais. Até porque, hoje é muito comum vermos organizações que discursam em prol da igualdade de gênero e da sororidade, mas reproduzem desigualdades e silenciam diante de violações de direitos de outras mulheres com quem não tem afinidades políticas, partidárias, ideológicas. 

Há, todavia, quem use a palavra sororidade para substituir o termo feminismo, dado o grau de crítica e resistência que este sofre. Porém, no meu entender, isto deve ser evitado, pois ações de sororidade que ocultam o feminismo pode ser presa fácil das práticas patriarcais. Até porque, se a sororidade visa favorecer o empoderamento feminino é impossível fazer isto sem se opor à cultura e estrutura patriarcal. Deste modo, e na prática, sororidade não deve ser reduzida a uma conduta que nos convida a ser amiga ou a ser mais legal com outras mulheres, mas como uma proposta política que nos convida a pensar por que não votamos em mais mulheres, por que confiamos menos em profissionais do sexo feminino ou por que ainda há entre nós mulheres que sempre duvidam da palavra de mulheres vítimas de crimes?

Creio que é preciso observar as condições materiais que possibilitam ou dificultam o exercício da sororidade, afinal, os feminismos populares, negros, trans e decoloniais tem evidenciado os limites da tal irmandade entre mulheres. Sororidade, portanto, tem uma dimensão ética, política e prática e faz parte cada vez mais dos debates e das ações dos feminismos contemporâneos. Mas se trata de uma relação a ser construída, pois não está dada, definida e muito menos acabada. 

Salete Maria é professora doutora do Bacharelado em Estudos de Gênero e Diversidade da UFBA

Olhar para  todas realidades possíveis

Primeiro quero dizer à leitora/leitor que a prática deste conceito não cumpre seu papel muito bem. Mas antes vamos analisar o feminismo, que é um movimento político muito importante de transformação social e foi criado com a intenção de combater as diversas opressões construídas pelo patriarcado e enraizadas em todas as culturas, começando a ser difundido por mulheres que pregavam e lutavam pelo empoderamento feminino e por direitos e oportunidades iguais entre os gêneros. Porém, ao longo do tempo se viu um crescimento do feminismo de uma forma geral, com uma visão eurocêntrica, que não dialoga na prática com TODAS as mulheres, cuja pauta de luta vai além apenas do gênero.

Assim ficam as perguntas: como os diversos movimentos feministas devem se posicionar sobre a experiência da mulher com a desigualdade de gênero, relacionando-a com as diversas outras formas de opressão que ela enfrenta? Como construir ações considerando estas realidades diversas? Como praticar a sororidade incorporando estas diferentes experiências?

Falando de sororidade, esta surge no movimento feminista com conceito de irmandade entre mulheres baseado no fortalecimento, empatia e companheirismo entre as pares e enfraquecimento da misoginia, porém na prática é um pouco diferente. Vilma Piedade ampliou o conceito de Sororidade para Dororidade (2018) e diz que: “O feminismo só é uma luta possível se dialogar com todas as mulheres, sejam elas pretas, brancas, quilombolas, caiçaras, ribeirinhas, indígenas, lésbicas, trans ou qualquer uma das infinitas classificações possíveis em que as mulheres se enquadrem”. 

Baseada nestas reflexões, vou responder à pergunta norteadora da coluna de hoje, dizendo que sororidade não é gostar de todas as mulheres. O gostar aqui é refletido na dimensão do entender/defender, para além do sentido afetivo. Sabemos que muitas mulheres reproduzem o machismo por serem vítimas também da construção social em torno do ser mulher. Porém, ao longo do tempo muita coisa mudou. Saímos da total invisibilidade e violências diversas, para a garantia de alguns direitos, temos hoje uma vasta literatura que discorre sobre o feminismo em diferentes aspectos, a informação chega de forma muito mais rápida e fácil, porém a mentalidade de muitos homens e mulheres continua presa a este modelo tradicional do feminino belo, recatado e do lar.

Há mulheres, que conseguem exercer o direito a sua liberdade de forma mais ampla, mas criticam as feministas mesmo se beneficiando dos direitos alcançados pelas mesmas. Algumas reproduzem esses padrões patriarcais sem consciência, outras não. Esta parcela de mulheres que sabe plenamente que suas ações estão enraizadas em um sistema patriarcal e mesmo assim optam por reproduzi-lo, prejudicando não apenas a si como a todo um movimento, passam a ser opressoras conscientes, o que é ainda mais perigoso. Há também aquelas que se dizem feministas, mas não estão preocupadas com as diversas realidades de cada mulher, pautando o feminismo apenas pela desigualdade entre os gêneros. 

Se fizermos um recorte racial, podemos ver o quão triste e cruel é ver mulheres negras convivendo com a dor do machismo e também do racismo de cada dia, e perceber que as mulheres que falam tanto em sororidade, especialmente as com maior capital financeiro, inundam as redes sociais de postagens, algumas até participam dos movimentos na rua, mas na sua vida real formam suas “panelinhas” e não utilizam de seus privilégios para combater as muitas formas de opressão que diferentes mulheres convivem em suas vidas.

Pensar feminismo e sororidade de forma simplista e universalista, colocando o gênero como único foco da atenção, só prejudica as pautas que tanto o movimento combate. Sororidade, na minha opinião, é tornar todas as mulheres e suas diversas realidades visíveis. É combater o machismo e misoginia, mas também o racismo, lgbtfobia, xenofobia, gordofobia, é lutar de mãos dadas e apoiar as mães. É inserir na militância as índias, as mulheres sem teto e tantas outras realidades. É falar de feminismo, mas acima de tudo o praticar nas ações diárias, como respeitar a empregada doméstica (em sua maioria negras), proporcionando um ambiente de trabalho respeitoso, não usando do jeitinho para fazê-la acumular funções de cozinheira, lavadeira, passadeira, cuidadora e pagá-la um salário mínimo ou menos para apenas limpar sua casa.

É, de vez em quando, se oferecer para ajudar aquela amiga que é mãe, seja saindo com ela para conversar, seja lavando seus pratos, seja cuidando da sua cria, ao invés de olhar torto e achar que não sabem educar bem uma criança que faz birra, que são exageradas e estressadas sem nem sequer saber a vida que aquela mulher leva. É pensar em seus privilégios e como pode apoiar de verdade as mulheres, começando por uma auto avaliação de suas ações. Um dia, quem sabe, quando de fato a SORORIDADE real seja colocada em prática, este termo tão em moda atualmente faça mais sentido.

Enquanto isso, continuaremos avançando, lutando por todas, inclusive aquelas que oprimem, respeitando umas às outras, que é bem diferente de aceitar todas as formas de pensar, e, acima de tudo, nos unindo com quem realmente deseja uma melhor realidade para todas as mulheres desta e das futuras gerações.

Lívia Ribeiro é pedagoga, produtora cultural e idealizadora da marca de moda infantil sem gênero Yumpi Lumpi.

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