Sozinho no meio da multidão: a história de um motorista de trio com trauma de Carnaval

Gibeon Trindade, 62, foi agredido quando curtia a folia em 1979; quatro décadas depois, viaja protegido numa cabine climatizada

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  • Da Redação

Publicado em 26 de fevereiro de 2020 às 06:03

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Willian Aragão/Skol/Divulgação

A experiência do motorista de trio elétrico Gibeon Trindade, 62 anos, com o Carnaval de Salvador não começa nada bem. Há 41 anos, tinha ido curtir a festa, pela primeira vez, na Praça Castro Alves, mas não chegou a ver uma atração sequer: a recepção, conforme relembra com certo rancor, foi um murro nas costas seguido de um ‘atropelo’ de agressores desconhecidos. Caiu à beira do meio-fio e, já ali, fim de festa.

“Foi uma recepção muito dolorosa. Fui agredido pelos foliões, por nada, e ainda pela polícia. Quando eu tava tomando rumo pra ir pra casa, fui abordado na saída, todo quebrado, ensanguentado, pela PM, e levei um tapa. Tomei ódio de Carnaval”, recorda Gibeon, que voltou para a casa onde morava, no Pau Miúdo, com um único pensamento na cabeça: “Carnaval nunca mais”.

Também custei a curtir Carnaval por medo da violência. Conto isso num texto aqui mesmo no CORREIO, há dois anos: isso veio com tempo e experiência de saber os lugares certos de seguir, como parece ser a lida de Gibeon, no comando de um dinossauro ao lado de formiguinhas saltitantes. É essa, aliás, a impressão que tive de dentro do trio, como co-piloto informal, preocupado de minha conversa torná-lo desatento e causar um atropelo, por exemplo.

As décadas ao volante do trio garantiram a tranquilidade desde o início da viagem, no Campo Grande. E a reconciliação dele com a folia veio quando deixou a função de guarda portuário, no Porto de Salvador, e resolveu comprar um caminhão. O destino inventou de ser, justamente, um trio elétrico. No entanto, ele tratou de negar a destinação: passou a usar só para transporte de carga seca. Carnaval nem debaixo d’água.

Retorno Mas a experiência com o tipo de veículo e, claro, a pregação de peça da vida, levou Gibeon a se tornar motorista de um dos trios da tradicional família Tapajós, 32 anos atrás. A partir daí, foi um pulo para novos contratos voltados para a folia. “No final da década de 80, quando surgiu o primeiro trio-carreta, eu vendi um caminhão justamente para o dono desse carro”, diz Gibeon, se referindo ao trio elétrico do Skol Pagodão, com o qual rodou durante esse Carnaval e, na segunda-feira, aceitou ter nossa companhia durante parte do percurso.

O proprietário do VW Constelation, avaliado em R$ 100 mil, mas que leva na carroceria um equipamento avaliado em R$ 3 milhões, é Reinaldo Dourinho, o Adinho, de quem aceitou o convite, inicialmente, de dirigir apenas carros de apoio em micaretas. 

“Rodava o Brasil todo, mas só há 17 anos que voltei para o Carnaval de Salvador”, conta o cruzalmense que hoje mora em Petrolina (PE) e trabalha, durante o resto do ano, transportando cargas de tubos e conexões.

A conexão definitiva com o Carnaval baiano ainda é discada, ou melhor, complicada: custa a reconhecer que haja pontos positivos na folia, mas admite que o cachê e a alegria das pessoas ao redor - se divertindo da forma que ele tentou, mas não conseguiu - sejam um privilégio. E isso tudo sem nenhum empurra-empurra, de dentro de um camarote particular, climatizado, a 5km por hora, pra compensar a estreia traumática.

Solidão “Quis o destino, nessas voltas que o mundo dá, que eu estivesse aqui”, diz Gibeon, mas não ser perder a chance de engatar um novo reclame: a solidão no meio da multidão.“Antigamente, eu podia trazer minha esposa, que gostava de vir, me acompanhava, fazia companhia durante o percurso, mas hoje em dia é uma burocracia”, comenta ele, sobre a ausência de dona Irene, com quem é casado há 12 anos. O casal mora em Petrolina (PE).A viagem praticamente anual a Salvador tem um motivo: o trio elétrico RG é uma espécie de Excalibur, sendo seu Gibeon o Rei Arthur que o tira do lugar. “O caminhão fica aqui no estaleiro da empresa o ano todo. Praticamente só sai no Carnaval e os donos só confiam em mim para conduzir. Todo ano eu digo que não venho, mas eles me convencem”, diz aos risos, ao lembrar da relação familiar com Geraldo Bulcão Dourinho, 42, atual coordenador da RG Trios. “Vi esse menino com 12 anos”, conta.  

A empresa tem nove veículos, entre trios e pranchões, incluindo o Constellation que transportou La Fúria e A Dama do Pagode para a pipoca nesse Carnaval.

Mas pipocar das convocações não deve estar mesmo no radar de seu Gibeon, apesar da briga antiga para fugir da folia. Ele reconhece alguns orgulhos e prazeres que a função lhe confere, como a honra de conduzir o primeiro trio a gás da história. Foi o Trio Ecológico, de Daniela Mercury, em 2015.

Mas, no embalo da pegada ecológica, não dá pra ficar dois minutos de papo com seu Gibeon sem ouvir uma reclamação - ainda que o barulho abafado dentro do trio atrapalhe a compreensão de algumas falas.“Aqui é complicado porque, veja só, eu sou um índio para vários caciques. Na mesma hora que um fiscal de pista me manda andar, o cara da banda manda parar. E ainda tem a polícia que vem dizer o que você tem que fazer, ou o artista”, resume, ainda que com um sorriso no rosto.Glória Mas o ponto alto de sua experiência como motorista de trio não foi na Bahia, e sim no Rio. Mais especificamente no Rock in Rio de 2001, no qual conduziu um trio que tinha Moraes Moreira acima. 

“Moraes mandou parar o trio e falou: ‘o motorista é o principal artista. Sem ele, a gente não vai pra lugar algum’, e depois pediu aplauso ao público, desceu, conversou comigo. Foi o único que fez isso em todos esses anos”, diz, com a alfinetada característica às dezenas de estrelas do axé que já conduziu. Na ciranda carnavalesca de amor e ódio à folia, Gibeon agora viaja com seu amor bruto, conduzindo a alegria de milhares de foliões, mesmo na solidão, por onde passa.

*O CORREIO Folia tem o patrocínio do Hapvida, Sotero Ambiental, apoio institucional da Prefeitura Municipal de Salvador e apoio do Salvador Bahia Airports e Claro.