Suspenderam as celebrações, abro um vinho e rezo em casa

É tempo de renovar o pacto com vida abundante, com modos e costumes que nos fazem ser quem somos

  • Foto do(a) author(a) Flavia Azevedo
  • Flavia Azevedo

Publicado em 17 de janeiro de 2021 às 13:01

- Atualizado há um ano

. Crédito: .

Calçar os tênis mais velhos ou as sandálias de borracha, escolher a bermuda mais confortável, usar um biquíni por baixo, a camiseta levinha, o celular, a xerox da identidade, os cartões (plano de saúde e banco) sempre na bolsa pequena impermeável que vai amarrada por dentro da roupa. Cigarros e dinheiro trocado nos bolsos. Uma nota mais alta (pra emergência) entre a meia e o sapato, quando acho melhor do que sandália. Maquiagem só nos olhos e filtro solar, se for o caso. Enquanto me arrumo, várias vezes o coração dispara.

Pedir licença a Exu (ou a quem cada um quiser, se quiser), antes de pisar no asfalto, e vai. Toda festa de largo é celebração e catarse. De dezembro a fevereiro (às vezes março), é Kumbh Mela de baiano e isso é seríssimo. Só acha bobagem quem não teve a sorte de ser iniciado ou está arruinado por escolhas de vida que colocam o prazer em um lugar completamente errado. A pessoa pode não querer frequentar (até achar chato, barulhento, não gostar), mas tem obrigação de saber que, nesse período, é ioga, psicanálise, rivotril, banho de folha, ebó, oração, tudo junto e para todos. Pega quem quer, ninguém é obrigado. Mas, tá no ar e eu - a não ser por motivo de estar parida, doente, com filho pequeno ou morando fora - não falto.

Repare: Carnaval, esse que tem em mais uns dois ou três lugares (apesar de não ser igual), apenas fecha um ciclo no qual sagrado é o corpo em festa, alcançando prazeres e exaustões inimagináveis. Nesse período, quem procura, em Salvador, vai sempre achar um batuque, uma lavagem, uma roda de samba, um ijexá. Durante três meses, todo trio passando, toda gente andando a pé nas ruas de acesso, toda multidão é ritual. É profundidade, pra quem sabe ver. É tempo de renovar o pacto com vida abundante, com modos e costumes que nos fazem ser quem somos, com algo muito além da "tolerância" que tantos pedem e é o mínimo só que tratado, hoje, como diferencial. É temporada de conhecer, de misturar.

Entre as dores da pandemia, a ausência disso também me dói. "Mas com tanta gente morrendo você sente falta de festa, criatura?". Cada coisa em seu lugar. Tenho sentido, sim. Demais. Todos os dias, desde que chegou o Verão, e piora quando penso que o Bonfim, neste ano, foi só reza, por exemplo. Dá licença que o sentido de sagrado também é individual. Pra mim, sagrado é o transe, são os abraços suados, é estar sozinha entre milhares de pessoas e sermos uma coisa só. É cantar o hino do Senhor do Bonfim, no ouvido do meu irmão pernambucano, assim que avistamos a igreja, exaustos de dança e caminhada. É, no fim do percurso, mergulhar no mar. É encontrar gente que só vejo assim e dizer que amo sendo muita verdade. Pra mim, sagrada é a humanidade falha, explícita, às vezes decadente (a depender do olhar) que se manifesta em nossas festas de largo. No chão. Sem pulseirinhas. Sem camarotes. Com os pés sujos de lama. Somos nós em fervura, bem temperados.

Neste ano, suspenderam as celebrações e isso está certíssimo, não me entenda mal. Não furo isolamento, lamento as festas clandestinas e toda a irresponsabilidade que tem custado caro. Abro um vinho e rezo em casa. Peço saúde e prazer, essas coisas indissociáveis. Para todos/as nós. Mentalizo rua, caminhos abertos, noites viradas com o corpo em festa. Desejo sorrisos bêbados, cheiro de cachaça e cigarro. Rezo por certo tipo de loucura e olhares mais livres, suor, gargalhadas, pele queimada de sol. Clamo por menos caretice, menos estranhamentos bestas diante do que somos, e somos vários. Peço que se abram as grades, quando for possível, quando chegar a hora certa. Peço muita sabedoria para saber que hora é essa. Agradeço por seguir desejando e entendendo, profundamente, que isso tudo - ainda que demore - vai voltar. Que isso nos encontre vivos/as, não só no corpo, mas também naquilo que chamamos de alma. Laroyè, Exu! Evoé, Baco!