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Da Redação
Publicado em 22 de janeiro de 2022 às 11:00
- Atualizado há 2 anos
Escrevo aqui na pressa e na força da indignação, pra não dizer do ódio que o povo mais puritano fica assustado. No bloco de notas do celular, na estrada, com o carro em movimento. Posso ficar enjoada ou ter um descolamento de retina, só que é uma emergência. Eu já tinha meu artigo pronto, mas agora tudo que tenho é uma hora "de relógio" pra entregar à minha chefa este daqui. Se não, ela vai publicar o outro que tá massa, mas prefiro que fique pra semana que vem. Isso, porque não há a menor condição de não fazer, publicamente, pelo menos, a seguinte pergunta: tá bonito vocês evocando o Mané na morte de Elza Soares? Mas vou adiante, até.>
("Cadê meu celular? Eu vou ligar pro 180.") >
Isso que vocês estão fazendo e achando "romântico" é muito feio. Toda vez que leio "Elza foi encontrar Garrincha no além" fico olhando para a cara de quem escreveu e pensando "é isso que você espera de toda mulher: que, no fim - não importa o quanto lute nem o tamanho de sua construção - termine a vida com um macho, por pior que o macho seja". Esse é o desfecho "desejado". O Mané era péssimo e todo mundo sabe. Um encosto de quem Elza, com muita coragem, conseguiu se livrar. A história dela termina perfeita e sem Garrincha, não há graça nesse papo de "reencontro no céu" porque houve violência e um divórcio pedido por ela, que cansou de apanhar. >
(Podia ser gênio nesse negócio de futebol, mas pra marido, não prestava. Todo mundo sabe. Tem matéria por toda parte contando detalhes do casamento que chamam, com eufemismo, de "conturbado".) >
"Ainn, mas ele era o amor da vida dela". É, Elza disse isso, no que nos dá mais uma, entre tantas lições. Também por esse motivo, usei a palavra "coragem" ali em cima. A gente não se separa apenas por ter deixado de amar. Quando é assim, é fácil. Difícil é quando a gente se afasta do outro apesar de amar. Aí é que são elas. Entender que sentir amor significa muito pouco, quando certos elementos entram em cena, exige muita valentia. Passar por cima desse sentimento, eleger outras prioridades e trabalhar por elas, é uma luta grande que eu conheço.>
Elza ESCOLHEU interromper a concretude daquele amor que fazia mal, ainda que assumisse a permanência do sentimento. Com isso, conquistou o protagonismo dessa história e ficou maior do que o tal amor que vocês evocam agora como personagem principal - além de sentença - junto com o fantasma do agressor. Oxe! Conseguem perceber como é deslocado esse "romantismo"? Ofensivo? Patético? Ela optou, em vida, por não estar mais com o Mané. Ponto. Acabou. >
A alma de Elza tá pouco se importando, eu sei, mas vocês precisam de luz, axé e algumas melhorias. Daqui, olhando essa enxurrada de homenagens ao "casal", vejo o quanto seguimos mal das pernas em todos os meios, até nos de gente mais "legal". Ainda olhamos (eu não!) com simpatia para o "amor conturbado", achamos (eu não!) bonito o "grande perdão final" mas, claro, só se o agressor for homem e a agredida for mulher. Se fosse ela a alcoólatra violenta, ninguém nem pronunciava o nome mais. Elza sobreviveu a Garrincha, assim como sobreviveu à fome e à dor de perder filhos. No plural. Ele, o Mané, foi um problema. Esse cara, hoje, teria sido preso, mas eram os anos 70, que pena. Agora vocês, assim como fazem os machos que "não aceitam o fim do relacionamento" (e matam, por isso), dizem "ah, que lindo, eles vão se reencontrar". >
(Fosse comigo, eu voltava pra puxar vários pés.)>
Ao desejar esse "reencontro", vocês sugerem que Elza, simbolicamente, volte ao inferno do qual ela conseguiu fugir em vida. Ou o que mais seria passar a eternidade ao lado do cara que gritava e batia? Quer dizer que, décadas depois da separação, carreira brilhante, sucesso retumbante, militância feminista poderosa, antirracista veemente, vários namorados lindos, a criatura agora tá lá abraçada com o próprio agressor? Tá não, gente. De jeito nenhum. >
Primeiro porque essa praga não vai pegar numa mulher retada daquela. Depois porque, evidentemente, a pessoa que ela se tornou sabe identificar - e se afastar de - um homem que não presta, mesmo entre querubins e serafins, em qualquer plano de existência, mesmo que a figura coincida com a de um grande amor. Foi exatamente sobre isso que ela falou nos últimos tempos, agora tá parecendo que ninguém escutou. >
Tinha um grupo no Orkut que chamava "A velha acordou e quer papo" e tratava de "ex" que faziam merda e voltavam, depois de muito tempo, puxando assunto de romantismo. Tô lembrando demais disso com a assombração que vocês trouxeram para esse momento de despedida. Contra tudo isso, se houver o "além", imagino Elza sentada num trono, cercada pelo tipo de gente com quem escolheu conviver em vida: militantes das boas causas, mulheres donas de si, pessoas livres. >
Com ele, não. Nem que o fantasma implorasse, chorando de joelhos, com a cara cheia de catarro. Que ela não ia querer como garante, na música que citei no primeiro parêntese, e termina dizendo "Pra cima de mim? Pra cima de moi? Jamais, MANÉ!", se referindo, exatamente, a um traste que bate em mulher. Agora, também lhes pergunto: de quem era que Elza, ao cantar essa letra, estava falando? Escutem todinha, reflitam e vejam se não ficam escabriados. Me deixem. Respeitem a luta, a construção e o legado. >