Tá bonito vocês evocando o Mané na morte de Elza Soares?

Esse cara, hoje, teria sido preso, mas eram os anos 70, que pena

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  • Da Redação

Publicado em 22 de janeiro de 2022 às 11:00

- Atualizado há um ano

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Escrevo aqui na pressa e na força da indignação, pra não dizer do ódio que o povo mais puritano fica assustado. No bloco de notas do celular, na estrada, com o carro em movimento. Posso ficar enjoada ou ter um descolamento de retina, só que é uma emergência. Eu já tinha meu artigo pronto, mas agora tudo que tenho é uma hora "de relógio" pra entregar à minha chefa este daqui. Se não, ela vai publicar o outro que tá massa, mas prefiro que fique pra semana que vem. Isso, porque não há a menor condição de não fazer, publicamente, pelo menos, a seguinte pergunta: tá bonito vocês evocando o Mané na morte de Elza Soares? Mas vou adiante, até.

("Cadê meu celular? Eu vou ligar pro 180.") 

Isso que vocês estão fazendo e achando "romântico" é muito feio. Toda vez que leio "Elza foi encontrar Garrincha no além" fico olhando para a cara de quem escreveu e pensando "é isso que você espera de toda mulher: que, no fim - não importa o quanto lute nem o tamanho de sua construção - termine a vida com um macho, por pior que o macho seja". Esse é o desfecho "desejado". O Mané era péssimo e todo mundo sabe. Um encosto de quem Elza, com muita coragem, conseguiu se livrar. A história dela termina perfeita e sem Garrincha, não há graça nesse papo de "reencontro no céu" porque houve violência e um divórcio pedido por ela, que cansou de apanhar. 

(Podia ser gênio nesse negócio de futebol, mas pra marido, não prestava. Todo mundo sabe. Tem matéria por toda parte contando detalhes do casamento que chamam, com eufemismo, de "conturbado".) 

"Ainn, mas ele era o amor da vida dela". É, Elza disse isso, no que nos dá mais uma, entre tantas lições. Também por esse motivo, usei a palavra "coragem" ali em cima. A gente não se separa apenas por ter deixado de amar. Quando é assim, é fácil. Difícil é quando a gente se afasta do outro apesar de amar. Aí é que são elas. Entender que sentir amor significa muito pouco, quando certos elementos entram em cena, exige muita valentia. Passar por cima desse sentimento, eleger outras prioridades e trabalhar por elas, é uma luta grande que eu conheço.

Elza ESCOLHEU interromper a concretude daquele amor que fazia mal, ainda que assumisse a permanência do sentimento. Com isso, conquistou o protagonismo dessa história e ficou maior do que o tal amor que vocês evocam agora como personagem principal - além de sentença - junto com o fantasma do agressor. Oxe! Conseguem perceber como é deslocado esse "romantismo"? Ofensivo? Patético? Ela optou, em vida, por não estar mais com o Mané. Ponto. Acabou. 

A alma de Elza tá pouco se importando, eu sei,  mas vocês precisam de luz, axé e algumas melhorias. Daqui, olhando essa enxurrada de homenagens ao "casal", vejo o quanto seguimos mal das pernas em todos os meios, até nos de gente mais "legal". Ainda olhamos (eu não!) com simpatia para o "amor conturbado", achamos (eu não!) bonito o "grande perdão final" mas, claro, só se o agressor for homem e a agredida for mulher. Se fosse ela a alcoólatra violenta, ninguém nem pronunciava o nome mais. Elza sobreviveu a Garrincha, assim como sobreviveu à fome e à dor de perder filhos. No plural. Ele, o Mané, foi um problema. Esse cara, hoje, teria sido preso, mas eram os anos 70, que pena. Agora vocês, assim como fazem os machos que "não aceitam o fim do relacionamento" (e matam, por isso), dizem "ah, que lindo, eles vão se reencontrar". 

(Fosse comigo, eu voltava pra puxar vários pés.)

Ao desejar esse "reencontro", vocês sugerem que Elza, simbolicamente, volte ao inferno do qual ela conseguiu fugir em vida. Ou o que mais seria passar a eternidade ao lado do cara que gritava e batia? Quer dizer que, décadas depois da separação, carreira brilhante, sucesso retumbante, militância feminista poderosa, antirracista veemente, vários namorados lindos, a criatura agora tá lá abraçada com o próprio agressor? Tá não, gente. De jeito nenhum. 

Primeiro porque essa praga não vai pegar numa mulher retada daquela. Depois porque, evidentemente, a pessoa que ela se tornou sabe identificar - e se afastar de - um homem que não presta, mesmo entre querubins e serafins, em qualquer plano de existência, mesmo que a figura coincida com a de um grande amor. Foi exatamente sobre isso que ela falou nos últimos tempos, agora tá parecendo que ninguém escutou. 

Tinha um grupo no Orkut que chamava "A velha acordou e quer papo" e tratava de "ex" que faziam merda e voltavam, depois de muito tempo, puxando assunto de romantismo. Tô lembrando demais disso com a assombração que vocês trouxeram para esse momento de despedida. Contra tudo isso, se houver o "além", imagino Elza sentada num trono, cercada pelo tipo de gente com quem escolheu conviver em vida: militantes das boas causas, mulheres donas de si, pessoas livres. 

Com ele, não. Nem que o fantasma implorasse, chorando de joelhos, com a cara cheia de catarro. Que ela não ia querer como garante, na música que citei no primeiro parêntese, e termina dizendo "Pra cima de mim? Pra cima de moi? Jamais, MANÉ!", se referindo, exatamente, a um traste que bate em mulher. Agora, também lhes pergunto: de quem era que Elza, ao cantar essa letra, estava falando? Escutem todinha, reflitam e vejam se não ficam escabriados. Me deixem. Respeitem a luta, a construção e o legado.