Tá faltando mãe no mercado

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  • Flavia Azevedo

Publicado em 1 de março de 2020 às 17:45

- Atualizado há um ano

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"Isso é falta de mãe". Meu filho mandou essa frase, na conversa sobre um fato que presenciamos. Nosso amigo disse "é mesmo" e meu impulso foi retrucar "mas e o pai"? Só que eu calei. Primeiro, por causa do prazer. A vozinha dele falando "isso é falta de mãe" me fazia um carinho pois, ao perceber a falta da mãe de outro, ele me dizia do seu próprio preenchimento. Eu estava, eu estou. Juro que não foi pensar "sou melhor que a outra", mas a sensação gostosa de estar conseguindo cumprir a proposta que me fiz. Depois, porque concordei. Tem um problema que se chama falta de mãe, sim. Dele, derivam muitos outros. E não adianta que não tem avó, pai, babá nem niguém que resolva porque talvez esse seja o maior buraco que alguém pode ter.  

(Preciso esclarecer, pra começar: eu falo, especificamente, da falta da mãe que existe, que é esperada, que está por perto, que quase está, mas não está. Obviamente, reconheço diversos e legítimos formatos de famílias, inclusive aquele no qual não há mãe, apenas pais. Não acho que nesses casos, nas famílias estruturadas de outras formas, uma mãe faça, necessariamente, falta.)

Nas famílias de formato hetero tradicional, a falta da mãe é uma coisa relativamente recente, um vazio tão triste quanto comum, que vejo cada vez mais. A proposta de direitos e deveres iguais entre pais e mães, não deveria ter resultado em mais ausência no ambiente de casa. Antes, era só o pai que não estava, mesmo quando fisicamente presente. Foi tanto disso que acostumamos com homens desimportantes e dispensáveis. Normalmente, uma figura autoritária, com quem as crianças não dividiam nada. O tempo passou, chamamos para a igualdade de direitos e obrigações. Eles cagaram. A maioria permaneceu no mesmo lugar. Os mais canalhas, passaram a prover menos, a se sentir menos responsáveis pelo sustento dos/as filhos/as e ainda se negaram a assumir o exercício cotidiano e subjetivo da paternidade. 

Enquanto isso, avançamos, no mercado de trabalho, como desejávamos. Mas, diferente do planejado, continuamos sozinhas na tarefa de criar esses filhos e filhas com quem eles posam nas redes sociais. Acumulamos e, no fim das contas, somos só nós, em todos os lugares. Em alguns, por desejo e direito. Em outros, por pura necessidade. Sem a parceria dos pais dos/as nossos/as filhos/as, chegou a inevitável sobrecarga e alguma falta, porque é claro que ninguém consegue estar, ao mesmo tempo, em todos os espaços. Sim, a "falta de mãe" passou a ser uma realidade, em muitas casas. 

Eu sei o quanto custa ser uma mãe que está, desde que me separei e o pai do meu filho decidiu se mudar para um outro estado. Ele cumpre as obrigações financeiras e regime de convivência, mas não é alguém com quem eu jamais pude dividir qualquer demanda cotidiana, até pela questão geográfica. Tirando o pai, a obrigação é só minha e (apesar das ajudas que aceito) sempre tive isso claro. Nunca comi esse papo de que a "aldeia" criaria meu filho, nem pensei em transferir essa responsabilidade. Então, trabalho por dois, porque preciso fazer sozinha o que devia ser dividido. Muitas vezes, tô exausta quando chega a parte que só cabe à mim, no lugar do meu exercício específico de maternidade. Respiro e faço. Mesmo. Por prazer e amor, muito. Mas também por ter total consciência da importância desse espaço. Estar presente sempre foi desejo, necessidade, vontade. Mas, para que isso fosse possível, mudei toda (toda mesmo) a minha vida. Coisa que poucas mães podem (ou querem) fazer. São múltiplas as realidades emocionais, psiquicas e sociais.

Dá pra tratar esse tema sem apontar dedos, sem insinuar culpas, sem ser careta, sem complicar? Tô tentando, mas não sei se vai dar. Acho mesmo que um "eu estou aqui" de mãe, não pode ser só metáfora. Tem que ter tempo, sim. Quantidade de tempo pra ouvir o que o/a filho/a tem pra dizer depois dos longos silêncios, por exemplo. Pra estar na hora do choro que foi contido diante de outras pessoas. Mãe não pode ser "outras pessoas", não pode ter formalidade, não pode viver sempre com pressa nem ser só nos fins de semana e feriados. Mãe tem que saber curar as feridas das crias e esse é um longo aprendizado. A gente não pode se acostumar com a mãe que falta. Maternar é estar junto, essa não é uma tarefa terceirizável.

Sobrevivemos ao homem/pai ausente e aqui não vai nenhuma liberação de responsabilidade, claro. Também não vejo privilégio algum em quem recebe o atestado mais definitivo de desimportância, pela performance lamentável. No entanto, falta de mãe me parece mais complicada. Por muitos motivos, mas também porque foi o que sobrou, porque era o garantido, porque sempre estivemos. Coincidência ou não, a quantidade absurda de crianças depressivas e com outros distúrbios psíquicos, agora que, cada vez mais, deixamos de estar. Recuar, jamais. Não voltaremos a ficar apenas dentro de casa. Mas, sim, temos uma questão a resolver. Coletivamente, inclusive. Porque a "aldeia" não cria os/as filhos/as, mas precisa entender o preço alto que todos/as pagam, quando mãe começa a faltar.