Também no caso Kezia, os atenuantes somos nós

O discurso da defesa vai sendo plantado na imprensa e encontrando eco em tudo que pensa a coletividade

Publicado em 23 de outubro de 2021 às 11:00

- Atualizado há um ano

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Eu acho um dinheiro fácil o que recebem os advogados de feminicidas. Fazendo lá o trabalho deles, tudo em que fundamentam suas defesas encontra apoio no pensamento comum, ordinário. Qualquer "atenuante" faz sentido e vai tirando, devagarinho, o "peso" de cima desse tipo de cliente. Eu podia usar qualquer exemplo, inclusive foi outro dia que o agressor de Maria da Penha teve seus crimes, publicamente,  relativizados. Mas vamos falar desse caso recente, mesmo que eu ainda seja obrigada a chamar esse tal José Luiz de Britto Meira Júnior de "suspeito", em vez de criminoso. Porém nada me proíbe de usar aspas.

Óbvia estratégia, o discurso da defesa vai sendo plantado na imprensa, aos pouquinhos, e encontrando eco em tudo que pensa a coletividade. Assim, vão amaciando, marinando a opinião pública e isso sempre funciona, nesse tipo de caso. Veja bem: contra o "suspeito", até agora, pesam um cadáver, gritos vindos do apartamento e a afirmação do porteiro de que Kezia disse que o (então) namorado havia ameaçado matá-la. Bom, com o episódio da ameaça, a defesa quase não precisa se preocupar. Na hora em que escutamos, já tiramos a atenção do fato e "mas, por que, depois de ameaçada, ela voltou pro apartamento?" é a pergunta que deveria calar, só que pula na frente da que importa porque errada é quem volta pra ser assassinada e não quem mata. 

Eu sei que você desviou a atenção e eu também desviei. Só que o fato de ela ter sido burra (desculpe, não tenho outra palavra) não justifica assassinato. O cara diz "você foi burra por ter voltado" e atira nela. Mereceu, portanto e ele teve razão. Parece absurdo? Assim, explicitamente, ninguém há de concordar, mas é o que anda em algum lugar das cabeças, ainda que não se diga com todas as letras e tal. Até isso chegar na frente do juiz, daqui a anos, a declaração do porteiro já estará suficientemente atenuada. Isso porque a justiça é feita à nossa imagem e semelhança, pois não? 

(Sobre os gritos que vieram do apartamento, normal. "Mulher faz escândalo por qualquer bobagem".)

Bom, o que a defesa precisa agora, portanto, é ir esvaziando o cadáver, deixando mais leve que o ar, com a ajuda de todos/as nós. O que já vem sendo feito e, em menos de uma semana, o "suspeito" já está todo rodeado de entretantos, contudos, todavias e que tais. Por exemplo, ele "deu socorro", né? Se não ficou por lá, acompanhando o atendimento da (então) namorada, é porque estava sujo de sangue, precisava tomar um banho e se fazer apresentável. A namorada baleada na cara. Ele diz que foi um acidente. Ele não fica no hospital porque "precisa se arrumar". Para muitos, parece bem natural que, diante de uma mulher baleada, entre a vida e a morte, o namorado eleja o cuidado com a própria aparência como prioridade. 

Para acreditarmos que aquilo foi um acidente, precisamos aceitar, portanto, que esse é o comportamento natural de um homem que tem a própria namorada acidentada, em situação gravíssima, em um hospital: ir pra casa tomar um banho e se trocar. Parece possível ter sido um acidente porque é esse desprezo que esperamos de homens em relação a mulheres. Se a expectativa fosse de cuidado e consideração, a palavra "assassinato" já brilharia, só por isso, em neon. Pensando em se defender da acusação de assassinato, se for o caso, aí mesmo é que o "suspeito" - formado em direito - não cometeria o erro primário de agir como alguém que não se importa, se esperássemos que ele se importasse. Ou seja, para construir a versão "acidente", o "acusado" precisaria ficar no hospital. Chorando, lamentando, desesperado.

Assassinos, quando têm laços estreitos com suas vítimas, costumam encenar sofrimento e isso é importante pra que consigam despistar. Assim fazem parricidas e filicidas, por exemplo, porque, coletivamente, estranhamos a frieza de pais e mães que perdem filhos/as ou de filhos/as que perdem mães e pais. A ausência do desespero e da dor explícitos, levanta suspeitas. Vemos isso, também, quando o caso é entre amigos/as. Vinda de namorados e maridos, no entanto, a frieza nos parece absolutamente normal. Foram dois anos de relacionamento, entre Kezia e o "suspeito", mas ninguém estranhou que ele não estivesse, no mínimo, paralisado. 

A defesa diz que, na briga, Kezia pegou a arma. Que o "suspeito" tentou tirar a arma da mão de Kezia e, nessa hora, a arma disparou. Em Kezia, claro. Pode ser verdade, eu não estava na cena e não tenho como concordar ou discordar. Mas, de novo, os lugares sociais - que fazem sentido para uma maioria - são evocados. Agora, a "mulher desequilibrada" e o "homem apaziguador". Tão apaziguador que se arrisca diante de uma arma destravada (tanto estava destravada que disparou), mas a "mulher incompetente" (outra figura conhecida) consegue destravar a arma (que, evidentemente, o "suspeito" guardava travada, como manda o figurino) mas não apertar o gatilho e matar, pelo contrário, recebe a bala na cara, porém por acidente. Olhe, realmente. Eu tenho dificuldades. 

Mais um pouco e Kezia "se suicidou". Em muitos casos, chegamos quase a essa versão ou o que mais seria dizer que  "ela provocou, nunca valeu nada"? No mínimo, merecimento total que "vagabunda novinha só vive atrás de dinheiro e status, vitimando homens de bem que, com toda a razão, ficam despirocados". O erro dele foi ter estragado a própria vida por causa de mulher (já li isso, em vários comentários sobre o caso), "um cara bacana, pacífico, sem qualquer antecedente criminal nem histórico de violência". Os colegas de faculdade estão consternados. O cheiro de testosterona eu sinto daqui de casa, deitada em meu sofá, enquanto vejo a comoção coletiva com "onde ele vai cumprir a preventiva", se é em casa ou no quartel, tudo muito especial, dentro da legalidade. 

(Pronto, cadáver esvaziado, toca a cuidar de humanizar o "suspeito" que "ninguém pode julgar, inclusive ele tá sofrendo e o sofrimento já é muito castigo, na verdade".) 

Eu não sei detalhes desse caso, mas já vivi o suficiente pra chamar de "mais do mesmo" e até a palavra "feminicídio" em vez de agravar, atenua, nas cabeças e nas bocas, pode reparar. Foi uma boa tentativa, mas o que define a gravidade dos crimes, no fim das contas, é a importância que atribuímos às vítimas e não qualquer nomenclatura que se queira dar. Essa é a verdade. Veja os casos de assassinatos de "quem importa", como geram comoção, como você não acha nada explicável. A vítima é vítima e ponto final. A construção dessa "importância" - de um indivíduo ou grupo social - é cotidiana e não uma formalidade ou epifania diante do fato. Quem era Kezia - indivíduo e lugar social - na fila do pão? O que você faz, todos os dias, para mantê -la nesse lugar?

Matar mulher é bobagem e ainda será por muito tempo. Assassinatos de mulheres não têm muita relevância nem nos casos fictícios daquele jogo que meu filho adora, o Scotland Yard. Vale menos o que dizemos, o que escrevemos, o que sentimos e como morremos. Firme e forte é o "suspeito" que, agora, de volta ao eixo, vai explicar tudo direito até não deixar mais dúvida alguma. Não é nada do que você está pensando. Ou tudo será, exatamente, como você está pensando e essa é a grande cagada.

Feminicídio é um crime digerível, para homens e mulheres, ainda. Mesmo que não se diga isso, a conivência coletiva aparece no julgamento das circunstâncias, no desinteresse pelo caso que evapora em uma ou duas semanas. Vai dar tudo certo pro "suspeito", é só esperar baixar a poeira e apostar em todos nós, em nosso olhar coletivo, o melhor e mais eficaz atenuante. Liga a tevê que lá vem a próxima, aliás. Ou "next, please", como dizem os gentis atendentes londrinos nos guichês do metrô.