Tem cheiro de naftalina no ar

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  • Flavia Azevedo

Publicado em 21 de outubro de 2018 às 10:46

- Atualizado há um ano

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Na beira de um lago alemão, vi um casal de idosos jogando frescobol (ou algo parecido) completamente nu. Em Londres, esperei que semáforos abrissem ao lado de mulheres de burca, rainhas BDSM, pessoas usando pijamas, góticos e sei lá mais o quê. Em Nova Iorque, fiz um piercing com uma chinesa que não falava inglês, vi famílias de pessoas negras bem gordonas com camisetas da mesma cor e casais de noivos vestidos à caráter fazendo festa de casamento na rua, no meio da multidão. Tudo absolutamente natural. Não sei nada sobre lojas famosas e marcas de carros porque meu recorte é outro, eu não reparei. Observo gente. E a palavra "diversidade" sempre ocupou o lugar mais alto do pódio, entre as características que me indicam a evolução de um lugar. Hoje penso nessas imagens como vindas de um mundo que também tem problemas, claro, mas é muito melhor do que o que, hoje, temos aqui. E que já esteve mais próximo, mas agora me parece outra dimensão. Nunca a "síndrome de vira-lata" esteve tão presente em mim. 

(Assumo, podem me julgar)

Minha amiga estava em Cachoeira comigo e disse "aqui tá mais interessante do que Salvador". Sim, aquela cidadezinha é um oásis num Brasil que encaretou. No Rio, em São Paulo, Maceió, na cidade da Bahia... a negação da diversidade nos faz cheirar a naftalina. E eu nem vou falar de perversidades, ódios, agressões e afins. Por hoje, só quero dizer da contradição de quem se pretende sofisticado, mas tropeça no básico, segurando a corda que puxa um país inteiro pra trás. Porque até na superfície isso é trágico e ela - a superfície - vem dando sinais, faz é tempo. Saiba: mesmo que você nunca tenha agredido ninguém, se comeu algum "bolinho de Jesus" sabendo que era acarajé e deixou por isso mesmo, também é responsável por esse lugar cafonérrimo no qual acabamos por chegar. Se torceu o nariz para os cabelos duros que deixaram de ser alisados, julgou aquela mãe amamentando em público ou achou que a vida sexual dos vizinhos é da sua conta, lamento. Em algum lugar, agora, há alguém se sentindo no direito de julgar a sua existência (eu, por exemplo) e, nessa epidemia de mediocridade, todos andamos pra trás. Tá feio e eu nem sei se ainda dá pra parar. Era sempre pra ter respeitado, ter deixado os outros em paz.

A classe média/alta brasileira nunca soube direitinho, então eu vou explicar. Sabe o que é chique? Liberdade, amores meus. Chique é você ter meia hora livre e poder deitar só de calcinha na grama do parque pra pegar um sol, sem escandalizar ninguém. Isso existe. Precisamente, nos lugares onde muita gente sonha passar férias e até vai, mas não entende nada do que acontece por lá. Chiquérrimo é ser convidada pra ser madrinha de casamento e não importar se são homens ou mulheres que vão se casar. Coisa fina é cerimônia ecumênica, é bairro com restaurantes de muitas nacionalidades, é falar de projetos e não da vida dos outros, é ter um grupo de amigos onde de rasta a lorinho, todo mundo se harmoniza, na paz e no amor. Sofisticadíssimo é ir à padaria de pijamas, se der vontade, e isso ser um "problema" só seu. 

[[saiba_mais]]

Já fomos melhores, num passado próximo. Tava quase bom. Era maravilhoso o meu colégio, em Salvador, nos anos 90. Imagine: uma instituição batista onde não havia aula de religião. E tinha culto, aos domingos, onde ia quem quisesse. E eu ia, às vezes, com a família de Adriana, querida amiga. A mãe era batista, o pai não era. Depois, rolava cervejinha no churrasco pra quem gostasse e isso não ofendia ninguém. Sofisticado é quando a mãe de santo é amiga do padre, o padre recomenda a rezadeira e a crente me ajuda a lavar a roupa de Candomblé com a qual fui à Lavagem do Bonfim. Papa fina é a minha massagista, testemunha de jeová, com quem converso sobre Bíblia e sexo, com a mesma naturalidade. Percebe? Saúde mental. Também podemos chamar assim.

Fernanda não comemora aniversários, prefere morrer do que receber sangue alheio e acha que só se deve transar depois do casamento. Eu penso tudo isso ao contrário. E somos grandes amigas, pode acreditar. Nascemos sem o gene do desejo de fazer o outro viver como achamos certo e isso é finíssimo, elegante demais. Anote aí: se você entrou na onda de combate à diversidade, não tem roupa de marca que te salve, não tem perfume importado, não tem carro caríssimo que dê conta. Você é um mico. Não adianta juntar os trocados e desembarcar do Charles de Gaulle com essas roupas bizarras que a classe média/alta brasileira gosta de usar (olha eu julgando outra vez!). Mais do que nunca vai estar escrito em sua testa "pobreza". E eu não falo de pobreza material que essa não é motivo de vergonha. Tô falando daquela intransponível, a das cabeças obtusas que censuram arte, pensam pequeno e, neste exato momento, é piada mundial. Tá achando exagero? Então saia do whatsapp e procure se informar.

*Flavia Azevedo é produtora e mãe de Leo

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