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Flavia Azevedo
Publicado em 24 de janeiro de 2021 às 18:00
- Atualizado há 2 anos
Eu não me exponho ao ridículo de fazer cara de espanto com nenhuma notícia de que "o prefeito se vacinou", que o outro "nomeou as filhas para que fossem vacinadas" nem com qualquer dessas furações de fila que vem sendo anunciadas. Estaria pasma só se não conhecesse o povo que escondia o carro na esquina pra vir mentir, me pedir cesta básica, disputando comida com quem, de fato, precisava. Estive secretária de ação social de uma pequena cidade do Recôncavo baiano e essa experiência me ensinou muito sobre a nossa alma. Sou grata. E zero romântica, claro. Esse é um lado da questão.>
Com raríssimas exceções, vão furar a fila todos e todas que tiverem oportunidade. A não ser que haja plateia e que dizer "pude furar, mas não furei" interesse mais do que a imunização. Uns vão furar porque precisam levar vantagem até na fila do pão. Piores tipos, conhecemos demais. Outros, porque, sabendo que a fila já está furada, não acham sentido em respeitar o que, desde o início, já está desarrumado. Há também quem discorde (e decida desobedecer) das fases de vacinação com argumentos interessantes, inclusive. Já ouvi alguns.>
"Por que priorizar idosos de abrigos, se eles não saem de lá? Nessa primeira fase, vacinava só os funcionários e era melhor priorizar os idosos que estão em casa", foi um argumento que me balançou. Minha amiga, que é delegada, fala, com indignação, dos policiais que estão nas ruas, mas lá no final da fila, junto com a população carcerária. Também me fez pensar. E agora é pra incluir caminhoneiros/as ou professores/as? Argumento dos/as professores/as é voltar às aulas. Mas, que graça, né? Profissionais imunizados e as crianças - que nem aparecem na escala - que se lasquem? Ah, tá. E os/as caminhoneiros/as porque, bom, sei lá.>
Nesse protocolo, desenvolvido para esta pandemia, qual é mesmo a lógica? Eu sei que a situação é nova, mas há de haver algum sentido. Porém, ele me escapa. É pra pensar por merecimento (individual e de classe) ou por impacto na coletividade? Os critérios, pra mim, não estão claros. Por merecimento individual, na minha opinião, meu filho seria o primeiro do mundo mundial. Depois, todo mundo junto: eu, meus pais e demais amores. Logo, fica óbvio que não é assim que está certo pensar. Por merecimento de classe, o pessoal da área de saúde atuante na linha de frente. Acho que, disso, ninguém discorda. Ok. Tá. Ah, e os idosos, mas que estejam em qualquer lugar.>
Agora, veja por outro lado: se a ideia é impactar na coletividade, o certo não seria começar por quem não tem condições de manter qualquer cuidado profilático básico e circula por pura falta de opção? Tô falando da população em situação de rua, em primeiríssimo lugar. Em seguida, a galera mais vulnerável das favelas. Lá daqueles lugares onde todos os telejornais mostraram, o tempo todo, que, muitas vezes, não se pode lavar as mãos porque não há, sequer, água. Essas duas categorias, pra mim, também por merecimento e retratação. Dentro da lógica do impacto, a galera dos paredões também estaria no topo, junto com todos os frequentadores e promotores de aglomerações. Faz sentido, não? Olha que faz, se você conseguir pensar que nosso maior problema é quem espalha o vírus e favorece todas as mutações.>
Vacina não é prêmio por bom comportamento nem heroísmo. Se é, eu nunca soube. É para controle da pandemia. Ou assim dizem os especialistas. Dessa forma, faz sentido pensar que todos e todas têm o mesmíssimo direito de acesso, até a pessoa mais desprezível. Se, por infelicidade (ou má gestão) precisamos escalonar a distribuição, claro que virou "salve-se quem puder" e é inevitável lidarmos com nossas mazelas éticas. As coletivas e individuais. Não me espanto de jeito nenhum.>
Desconfiamos dos que nos governam, de seus critérios e atuações. Não somos, como sociedade, nenhum exemplo de civilidade nem temos fama de honestos, pelo contrário. Seríamos agora, que estamos morrendo aos milhares e a vacina é a única chance de voltarmos à vida comum? Vivemos um naufrágio e temos pouquíssimos botes, prioridades estão escritas em algumas paredes da embarcação. Mas deveria haver botes para todos/as, não há fiscalização. É uma emergência. Estamos desesperados/as. Então, eu lhe pergunto: isso que estão fazendo é mesmo "furar" a fila da vacinação?>
(Foco no que importa: exigir que tragam mais botes e rápido.)>
(E que cheguem logo, também, nas clínicas particulares, que já tira da fila do SUS quem pode e quer pagar.)>