Tem um homem negro, morto, sozinho na porta da minha casa

Não houvesse o muro, aqui mesmo de onde escrevo, poderia vê-lo. Na minha cabeça, vai e volta a palavra "invisibilidade", em diversas aplicações

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  • Da Redação

Publicado em 20 de novembro de 2021 às 11:00

- Atualizado há um ano

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Meio-dia e vinte de sexta-feira, dia 19 de novembro. Tem um homem morto aqui na porta. O CRAS já interferiu, polícia já passou por aqui, mas o corpo continua lá, desde de manhã. Ninguém resolveu, ainda, o que precisa ser resolvido. Tava coberto com papelão, por alguém que fez a caridade. Minha mãe arranjou um lençol pra substituir o papelão. Não sei quem pegou os cones da autoescola e sinalizou que ali há um corpo humano sem vida. 

Faz muito sol, tenho pena do corpo desconhecido sobre o cimento quente, passou por minha cabeça oferecer água, imagine. Fração de segundo. Acabei de olhar aqui do meu portão e, de dentro de casa, fiz a foto que ilustra este artigo. Ele tá sozinho, mas passam curiosos, de vez em quando. Levantam o lençol, olham, fotografam o rosto (o rosto!) do desconhecido e seguem seus caminhos levando a imagem íntima, a face do homem morto que não tem escolha e deve ser, em breve, compartilhado em grupos de Whatsapp. 

(Como você sabe, certo tipo de gente ordinária não ajuda em nada e ama espalhar detalhes de desgraças.)  (Foto: Flavia Azevedo) (Não faço ideia de quando vão retirar o cadáver da rua. Até agora, o que soube, é que "não é obrigação" de ninguém que foi acionado. Não sei de quem será.)

É um corpo negro. Nem sei o contexto, dizem que ele veio de longe resolver alguma coisa, caiu e alguém constatou a morte imediata. Pode ser que essa espera no chão seja apenas um hiato entre a vida digna e os cuidados que logo encontrará. Um acaso, um tropeço, uma morte banal e o tempo normal de mobilização para as providências de quem morre nessas condições. Não sei. O que sei é o hiato de solidão e a imagem de um homem preto morto, sozinho, na praça. Na véspera do Dia da Consciência Negra, isso evidentemente me convoca ao tema no qual eu havia decidido não tocar. 

Eu, não-negra (também não-branca, mas isso é outro papo), aprendi que certas falas, em determinados momentos, soam apenas como disputa de holofotes. Que me colocar em determinados protagonismos é inadequadíssimo e racismo implícito. Entendi que o melhor é amplificar o que é dito pelos sujeitos de cada contexto, sair da frente, não atrapalhar a passagem de quem tá lutando pra passar. Mas, agora, tem um homem negro, morto, sozinho, em via pública. Eu vi. Como é que faz pra escrever fugindo do único assunto no qual consigo pensar? 

Desculpe se vejo racismo em tudo, mas não dá pra forçar minha barra. Vejo mesmo. Todos os dias. A imagem desse cadáver me leva a muitos lugares. Um deles é pensar que, talvez, um homem branco desconhecido morto, no meio de uma cidade do interior, chamaria tanta atenção quanto uma criança branca pedindo dinheiro no semáforo, em qualquer cidade do Brasil. O mesmo tipo de atenção, aquela que diz "esse corpo não combina com essa situação" e você sabe a que me refiro. 

"Quem será?" perguntariam, todos/as sobre ele, cercando o morto branco, com imensa curiosidade, imagino. Principalmente, se estivesse "bem vestido", de acordo com certo padrão. Do mesmo modo que para cada uma delas - as crianças brancas das ruas - perguntam "está sozinha?" diversas vezes, dizem do quanto são "lindas" e lamentam que estejam naquela circunstância que não desperta tanta comoção quando acontece com crianças pretas. Porque aí é parte da paisagem urbana, não salta aos olhos. Não é estranho. Não comove. É "normal". 

(Há vídeos com essa experiência, procure que você acha.) 

Não consigo um raciocínio complexo com um homem morto logo ali, mas também não dá pra escrever sobre outra coisa, como se ele não estivesse a 20 metros de mim. Não houvesse o muro, aqui mesmo de onde escrevo, poderia vê-lo. Na minha cabeça, vai e volta a palavra "invisibilidade", em diversas aplicações. Hoje, é esse recorte que o homem morto me traz: brancos/as são, presumivelmente, "alguém", até que se prove o anonimato, o que quer que isso possa significar. Negros/as são, presumivelmente, "anônimos", até que se prove o contrário. Muitos/as provam, todos/as são convocados a provar. 

No mínimo, pedra cinza. Vivos ou mortos, estão no coletivo, no pano de fundo, diluídos na paisagem. Pedra cinza não sangra, não grita, não reage. Esse é o nome de uma técnica de invisibilidade, vendida por coaches de "psicologia", no YouTube. Eu acho massa e útil, para diversas situações. Foda é a consciência que se materializou em mim, hoje, mais uma vez: pessoas negras ainda são involuntárias "pedras cinzas" porque assim são percebidas, em muitas oportunidades. Não adianta minimizar, isso é real e precisa lhe incomodar, seja você quem for. Consciência dói e faz bem. Cada um/a com a sua, do próprio lugar. 

(E aquela frase de Morgan Freeman é uma tremenda sacanagem.)