‘Tenho uma raiva pela atitude das pessoas. Mas me sinto errada de sentir raiva’, diz arquiteta, sobre a covid

A raiva é uma das emoções básicas; saiba mais sobre os sentimentos na pandemia

  • Foto do(a) author(a) Thais Borges
  • Thais Borges

Publicado em 12 de junho de 2021 às 05:30

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Reprodução/Disney Pixar

Para lidar com os sentimentos da pandemia de forma saudável, devemos entender o que se passa. Na Psicologia, os 'estados afetivos emocionais' são justamente os sentimentos, emoções, humores e afetos. Apesar de serem tratados como sinônimos, não são a mesma coisa. 

As emoções do filme Divertida Mente de fato têm um papel importante para os humanos. Segundo a professora Sônia Gondim, do Instituto de Psicologia da Ufba, esses cinco estados - medo, tristeza, raiva, nojo e alegria - são as emoções básicas. 

Leia a reportagem principal: Quando seus 'divertidamentes' começam a brigar: entenda como ficam os sentimentos na pandemia

O CORREIO conversou com pessoas que estão passando por diferentes estágios desses ciclos de emoções e sentimentos. A seguir, confira relatos de duas pessoas que estão passando por momentos de raiva.  

‘Tenho uma raiva pela atitude das pessoas na pandemia. Me sinto errada de sentir raiva, mesmo sabendo que é humano’, diz arquiteta 

A arquiteta Mônica*, 29, ainda não se acostumou a sentir raiva. Antes da pandemia, era algo que ela praticamente não reconhecia. Hoje, não apenas acredita que esse estado afetivo predominante tem sido predominante como se culpa por sentir essa raiva. Ela conseguiu adaptar o trabalho para fazer 60% dele em casa, exceto quando tem visitas indispensáveis a obras ou idas ao banco. 

“Na pandemia, surgiu um sentimento que não era muito forte em mim, que é a raiva. Não é a raiva ligada a determinada pessoa, mas uma raiva ligada talvez à atitude das pessoas no geral. Não é apenas em relação à pandemia e à questão do vírus, mas a como as pessoas estão lidando com o vírus e também com a questão política que tem vindo junto com isso. 

Às vezes, as pessoas apoiam coisas extremamente destrutivas. E mesmo que a gente fale, argumente e mostre por A mais B que a pessoa está errada, ou que aquele pensamento ou que aquele coletivo estão errados, parece que há uma venda nos olhos. Isso me deixa muito indignada em relação a essas pessoas que têm um pensamento contrário a mim.A sensação é muito ruim, porque nunca fui de nutrir esse sentimento. Quando eu sinto isso, me sinto muito errada, apesar de saber que é uma coisa humana. Não me sinto bem, não me sinto confortável em sentir isso. Estou tentando melhorar, diminuir isso em mim, tentando compreender talvez o outro lado, os fatores que levam o outro lado a ser como é. Mas é algo que está bem forte em mim desde o início da pandemia. Desde o começo, nós vemos pessoas querendo negar que é uma situação muito grave. Então, essa coisa explodiu em mim. Agora, estou sentindo que está um pouco melhor, porque é como se eu estivesse aceitando mesmo sem concordar, mas tem sido difícil.

Na maioria das vezes, tento me expressar com algumas coisas pela internet ou pontuar quando vejo alguém falando, negando as mortes. Tento falar de uma forma educada mas, por dentro, estou borbulhando, querendo soltar os cachorros. Tento não passar de uma forma muito agressiva, apesar de que já aconteceu algumas vezes. 

Sei que o pensamento negacionista que tem ocorrido é uma coisa coletiva, então às vezes eu tenho medo de pegar essa coisa com o coletivo, essa raiva do pensamento coletivo e jogar em cima de uma pessoa só. Por isso, estou tentando controlar minha animosidade, como diria Karol Conká.Outro sentimento que vivi é uma desesperança. Essa minha raiva às vezes some e dá lugar a essa apatia, tipo deixa aí, esquece, não tem mais jeito, o mundo é isso mesmo. Mas daí a dois, três dias,quando vejo algo que é muito inadmissível para o meu pensamento, vem essa explosão dentro de mim. Tem um ciclo. Primeiro fico com muita raiva quando vejo algum noticiário ou alguém alimentando esse pensamento negacionista. Depois eu fico apática porque eu sei que, sozinha, não consigo resolver uma coisa que é coletiva. Às vezes, vêm algumas notícias de esperança. Na época que começamos a vacinar, eu fiquei muito feliz. Pensei: ‘ah, finalmente vai acabar esse pesadelo’. Mas aí volta  a raiva, a apatia, tudo”. 

*Nome fictício

‘Foi na pandemia que senti o que de fato era raiva’, diz brasileira que vive em Portugal

A estudante Maria Colares, 23 anos, tem vivido situações de raiva ao acompanhar de perto a situação política e sanitária em dois países. Além do Brasil, onde nasceu, ela mora no Porto, em Portugal, onde faz faculdade. 

“A raiva continua sendo o sentimento predominante em relação ao contexto pandêmico. Geralmente vem atrelada a uma náusea sem causa aparente, um nervosismo. Existem também diferentes objetos da raiva. Às vezes, sinto raiva de mim mesma por não conseguir fazer alguma coisa, ou raiva da própria situação, ou raiva também das pessoas que não respeitaram e/ou continuam desrespeitando a seriedade da conjuntura. 

Um exemplo recente foi a vinda dos torcedores do Manchester e do Chelsea para a final da Champions League aqui no Porto. Eu fiquei com muita raiva ao ver aquele absurdo acontecendo com a permissão do governo e pensando nas implicações futuras dessa decisão.

Tem sido assim desde março de 2020, quando eu senti que a coisa era realmente muito mais grave do que estávamos imaginando e, ao mesmo tempo, vendo a catástrofe anunciada em vários lugares do mundo. Nunca fui muito raivosa. Era um sentimento que até então era bem distante da minha personalidade. Eu ficava irritada, mas desde o início da pandemia foi que eu senti de fato o que é raiva.Sinto muita tristeza também. Apatia, ansiedade. Geralmente depois de ficar muito tempo sentindo raiva, a apatia aparece. Quando eu tinha que fazer algum trabalho e não conseguia fazer porque não conseguia parar de pensar,  sentia raiva da universidade por simplesmente acharem que estava tudo bem com os alunos. Depois, sentia raiva de ter que terminar, depois a raiva por não conseguir terminar… Era um looping da raiva. Depois vinha essa sensação de apatia.Esperançosa eu só fico quando a situação política permite. A impressão que eu tenho é que a raiva vai desgastando muito o sistema nervoso. Então, depois de sentir raiva por muito tempo, aparece uma tristeza, ou uma baixa de energia muito grande. Aí eu fico quieta, mas depois a raiva volta de novo.

Eu aumentei consideravelmente o tempo nas redes sociais como forma de tentar aliviar a raiva. Também caminho ou faço algum tipo de exercício físico. A prática de ioga me ajuda e comecei a fazer análise também. Tento sempre me manter afastada das notícias quando eu já estou muito nervosa. Quando percebo que o nível de raiva está muito alto vou ver alguma outra coisa, ligo pra alguém ou vou fazer um exercício.

Agora eu tenho visto alguns amigos. Ainda sou muito cautelosa, mas tenho feito algumas saídas com muito esforço. A expectativa que eu tinha quando pensava na abertura e no fim do lockdown era de que eu ia sair muito feliz pelas ruas, mas, na verdade, aconteceu o contrário. Ainda tenho muito receio em sair.

Saio hoje para fazer as provas da universidade, que costumam ser feitas presencialmente. Moro sozinha e costumo sair para a casa da minha amiga ou vou ao parque, alguma área aberta”.