Tigre na jaula

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  • Paulo Sales

Publicado em 24 de agosto de 2020 às 05:00

- Atualizado há um ano

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Na última semana, a experiência do confinamento se intensificou para mim. Até então, saía eventualmente e permanecia a maior parte do tempo em casa. Mas, após participar de uma reunião de trabalho na qual estiveram duas pessoas que testaram positivo para a covid-19, acabei eu mesmo me recolhendo por uns dias dentro de um quarto, por precaução, sem poder circular pela casa ou ter qualquer contato com minha família. Confesso que não foi fácil. Em alguns momentos, a clausura se converteu em claustrofobia. Eu me sentia como um tigre numa jaula, ou uma pessoa numa prisão.

Claro que essa comparação é um tanto descabida: tinha acesso a boa cama, boa comida, ar condicionado, livros, tevê, internet e som. Mas não conseguia me concentrar na leitura, apesar dos três livros dispostos na prateleira: Onde Encontrar a Sabedoria (Harold Bloom), Um Homem Só (Christopher Isherwood) e o segundo volume da saga proustiana Em Busca do Tempo Perdido, À Sombra das Raparigas em Flor. As páginas eram viradas e em seguida eu me dava conta de que não prestara a menor atenção nos parágrafos anteriores. Talvez porque precisasse de uma paz de espírito que o momento não proporcionava.

Em um dos dias de maior angústia nem mesmo o jazz conseguia me acalmar. Precisei recorrer a uma sonoridade mais densa, pesada, sombria: o Nevermind do Nirvana. Também trabalhei, vi jogos na tevê, conversei via aplicativo de mensagens com amigos. Mas a noção de tempo estava comprometida. Uma sensação estranha, como se o tempo passasse sem que eu fizesse parte dele. Pensei em como deve ser duro estar preso sem ser culpado. Dias, meses, anos enclausurado, vendo a vida pela fresta de uma janela com grades. Sem céu, sem sol, sem mar.

Estava preocupado, evidentemente. Temia – e ainda temo – o vírus que já levou mais de 110 mil vidas só no Brasil. Ao final, vieram o resultado negativo e o alívio. Pude voltar à varanda, ao vinho e ao afeto. Mas aqueles cinco dias de certa forma me marcaram. Senti solidão, tristeza, apatia, impotência. Sentimentos reforçados pela infecção que acometeu Pudim, nosso cachorrinho, que agora está melhor, mas ainda não inteiramente recuperado. Não podia acompanhá-lo na clínica nem pegá-los nos braços.

Então me dei conta de que o desalento que senti, como indivíduo, era fruto de uma enfermidade coletiva. Este país está doente e estamos adoecendo junto com ele. Aos poucos, lentamente, quase sem nos darmos conta, estamos adoecendo. A rotina das máscaras, a preocupação extrema com a limpeza das mãos e roupas, o distanciamento forçado de quem gostamos, os salários reduzidos. Já são cinco meses vivendo assim. O país das três raças tristes está mais triste do que nunca. Estamos brutalizados, broncos, bárbaros. Não consigo enxergar uma luz no fim do túnel que não seja a de um trem em alta velocidade vindo em sentido contrário para nos atingir.