'Toda vez que vejo o vídeo, sinto revolta, uma vontade de chorar', diz Crispim

Empresário, expulso de agência da Caixa, acusa gerente e PM de racismo

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  • Bruno Wendel

Publicado em 27 de fevereiro de 2019 às 16:11

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Marina Silva/CORREIO

O corpo de 1,70 m de altura e 74 kg sustenta uma coragem imensurável. O empresário Crispim Terral, 34 anos, poderia ter reagido ao “mata-leão” aplicado por um policial militar dentro de agência da Caixa Econômica Federal (CEF), no Centro de Salvador. No entanto, preferiu usar a força para iniciar, talvez até o momento, a luta mais importante de sua vida: a batalha contra o racismo.

“Toda vez que vejo o vídeo, sinto revolta, uma vontade de chorar. Por isso, não vou me calar. Vou até o fim”, declarou Crispim ao CORREIO, na manhã desta quarta-feira (27), quando deixava o hotel na Avenida Sete de Setembro, onde está hospedado. Ele mora em Salinas da Margarida, no Recôncavo baiano, e foi oito vezes na agência do Relógio de São Pedro para tentar um extrato de quitação de dois cheques debitados indevidamente em sua conta.

Crispim acusa a Caixa de racismo, após ter sido expulso da agência e retirado à força pela Polícia Militar, que atendeu ao chamado da gerência da unidade. A ação, que ocorreu na tarde do último dia 19, foi gravada pela filha adolescente do empresário, e as imagens, divulgadas em uma rede social. Crispim é proprietário da Farmácia Terral, na cidade onde vive, além de proprietário de duas lojas de assistência técnica de eletroeletrônicos na região.  Após a entrevista ao CORREIO, Crispim foi à 1ª Delegacia (Barris) para formalizar a denúncia. Ainda nesta quarta-feira, recebeu a primeira ligação da Caixa, desde quando tornou o caso público. “Quem me ligou disse que era superintendente da Caixa. Pediu desculpa pelo ocorrido, perguntou se era possível manter um diálogo. Ele deu a entender que queria que eu desistisse, mas eu vou mover uma ação contra a Caixa e o gerente”, declarou Crispim. Na manhã de hoje, a Caixa divulgou que afastou o funcionário envolvido no episódio. 

Ainda na manhã desta quarta-feira, o empresário recebeu ligação da secretária Fábya Reis, titular da pasta estadual da Promoção e Igualdade Racial (Sepromi). Ela o acompanharia, à tarde, em uma reunião com o comandante geral da Polícia Militar Anselmo Vasconcelos. Antes, o empresário compareceu ao Ministério Público do Estado da Bahia (MP-BA), para formalizar uma denúncia.

Gêmeo Crispim nasceu na cidade de Ituberá, Sul baiano. Ele era gêmeo univitelino de Crispiniano, falecido há cinco anos, vítima de meningite. “Como por dois, trabalho por dois, luto por dois, acho que foi por isso que o policial me deu um mata-leão”, disse num momento de descontração.  

O empresário mora em Encarnação, distrito de Salinas da Margarida. É lá que ele, junto com a mulher, cria os cinco filhos. Aos 34 anos, nunca tinha sido alvo de racismo.“Até então, ao dia 19 deste mês, ninguém nunca me tratou diferente por causa de minha cor. Nem a mim nem aos meus filhos. Hoje minha filha está traumatizada. Ela assistiu a tudo o que fizeram comigo”, relatou Crispim.Apoio   O fato aconteceu no dia 19 deste mês, mas somente agora o caso foi divulgado. Desde então, o empresário estava hospedado num hotel no Centro de Salvador junto com a mulher.  “Meu senso de justiça vinha falando mais alto. O estopim foi quando via nas redes sociais outros casos de racismo. Aí teve o momento que a dor de ser diferenciado pela cor da pele falou mais alto e resolvi expor toda a situação”, contou Crispim. Ele tem recebido apoio nas redes sociais e também nas ruas. “Recebi ligações de São Paulo, de Minas Gerais, do Rio de Janeiro, de Pernambuco, 3h, 4h, 5h da manhã, de pessoas que me conhecem e também de desconhecidos que pediram para não desistir e que estarão comigo nessa luta. Nas ruas, as pessoas dizem: ‘É isso aí. Não pare’. Outros falam: ‘Estamos com você’”, relatou o empresário.

Durante conversa com o CORREIO, a entrevista foi interrompida por mais de uma vez por pessoas que o cumprimentavam na porta do hotel.

“É isso aí. Tem que seguir em frente. Você é um homem de bem. Quantos estelionatários entram naquela agência de paletó e gravata e eles tratam bem? Só porque são brancos. O que o gerente fez foi racismo”, disse o auxiliar administrativo Ivolino D’Hora, 34, após dar um abraço em Crispim.

“Você está completamente cheio de razão. Quanto existem fatos, não há argumentos. O vídeo diz tudo. Se eu estivesse no lugar dele, já teria feito pior. Já dei um tapa num policial porque bateu no meu filho pequeno no Carnaval”, contou a técnica de enfermagem Mari Souza, 44. 

Fátima  Crispim disse que, com a repercussão do caso, vem recebendo inúmeras ligações. Só de advogados foram mais de 20.

“Acredito que umas 22 ligações, todos se prontificando para pegar o caso, que tudo ia dar certo, que o que eu necessitava é de um bom assessor (advogado)”,  disse ele, que já tem advogado, André Cruz, que o defendeu numa causa relativa à defesa do consumidor.

Ao que tudo indica, o episódio dentro da agência da Caixa será um dos temas tratados num programa da Rede Globo. Crispim disse que recebeu nesta manhã (27) uma ligação da produção do programa Encontro, da apresentadora Fátima Bernardes.

“Eles viram o vídeo e querem que eu vá para o Rio de Janeiro para participar do programa amanhã (28). Mas ainda não disse nada. Preciso ver com o meu advogado”, contou o empresário.

Medo Diante de tanta exposição, Crispim disse que teme represália do policial que o agrediu com um mata-leão. “A gente não deixa de pensar nisso, nas consequências. Mas não posso calar. Estou tomando minhas providências”, disse.

Apesar do medo, o empresário disse que a família mantém a rotina. “Todos continuam levando suas vidas normais. Não pretendo e não vou deixar minha cidade. Ligo para os meus filhos todos os dias para tranquilizá-los. Eles lá têm o apoio dos amigos. As pessoas da minha cidade também me apoiam”, disse. 

Crispim se recusou a ser algemado e, por isso, acabou recebendo um "mata-leão" - golpe de estrangulamento - de um dos PMs. O vídeo do momento em que Crispim é imobilizado foi gravado pela filha de 15 anos."Também acredito que sofri racismo por parte do policial, porque sequer esbocei uma reação, estava tranquilo. Podem até pedir as imagens das câmeras de segurança do banco. Minha filha ficou em pânico", disse. Crispim afirma que foi conduzido pelos policiais em uma viatura à Central de Flagrantes, onde foi autuado por desobediência e resistência. Em seguida, ele procurou uma unidade de saúde - a UPA dos Barris - onde recebeu atendimento por sentir fortes dores no maxilar, cabeça, pescoço e ombro esquerdo.

Ele prestou uma queixa contra os PMs na Corregedoria da Polícia Militar na quarta-feira passada (20).  Segundo o relato do empresário, registrado na Corregedoria e disponibilizado por ele em uma rede social, os soldados Roque da Silva e Rafaeal Valverde Nolesco iniciaram as agressões físicas contra ele. Crispim registrou caso na Corregedoria da Polícia Militar (Foto: Reprodução) Em nota, a PM informou que o 18º Batalhão da Polícia Militar (BPM/Centro Histórico) foi acionado por prepostos da agência porque um dos clientes se recusava a deixar o local, mesmo após o término do expediente.

A nota diz ainda que os policiais militares conversaram com o gerente da agência e ele relatou que o homem estava solicitando um comprovante de transação, que não poderia ser fornecido naquele momento, e pediu a remoção do cidadão do interior do estabelecimento em razão do encerramento do expediente bancário.

"Os policiais, então, dirigiram-se ao homem e solicitaram que ele acompanhasse a equipe junto com o representante da agência bancária à delegacia, para formalização da ocorrência em razão do impasse gerado pelo conflito de interesses. Os policiais relataram que o cidadão começou a se exaltar e dizer que não sairia da agência sem ter a sua demanda atendida, contrariando a recomendação das autoridades que intervieram no conflito", diz a nota.

A PM alega ainda que "houve a necessidade de empregar a força proporcional para fazer cumprir a ordem legal exarada, mesmo após diversas tentativas de conduzi-lo sem o emprego da força. Ele não foi algemado. O vídeo divulgado mostra uma condução técnica dos policiais militares na ação e também observa-se uma edição suprimindo parte do ocorrido".

Ainda segundo a polícia, uma sindicância será instaurada pelo 18º BPM para apurar todas as circunstâncias da intervenção policial. A polícia informa também que, apesar de ser um estabelecimento federal, quando a PM é acionada tem o dever de atender a ocorrência.