Todos estão surdos? Uma pergunta que talvez só seja respondida em milênios

Linha Fina Lorem ipsum dolor sit amet consectetur adipisicing elit. Dolorum ipsa voluptatum enim voluptatem dignissimos.

  • Foto do(a) author(a) Malu Fontes
  • Malu Fontes

Publicado em 10 de outubro de 2018 às 08:54

- Atualizado há um ano

. Crédito: .

Em uma de suas canções mais fascinantes, Chico Buarque fala de um Rio de Janeiro submerso, que, daqui a milênios, escafandristas e sábios virão explorar, para decifrar fragmentos, coisas, ecos, mentiras, vestígios de uma estranha civilização do passado. Chico fala de amores, do Rio, de escafandristas, do futuro revirando os sinais seculares que restaram de um passado. Mas, como diria Bela Gil, você pode substituir o Rio de Janeiro pelo Brasil inteiro, o casal da canção pelo eleitorado do país, o amor entre os dois pelas eleições de 2018 e os escafandristas do futuro por brasilianistas, sociólogos, cientistas sociais, historiadores.

O que dirão, em um futuro distante, aqueles que se lançarem à tarefa de explicar às gerações que virão, e com o privilégio da poeira assentada pelo tempo, o que estava acontecendo com o Brasil e os brasileiros nas eleições de 2018? Como traduzirão essa metamorfose radical que transformou todo mundo e cada um em um hooligan político e ideológico que, assustadoramente agressivo, antes de ouvir ou ao invés de contra-argumentar, xinga, ofende e desqualifica?

REVÓLVER DE CABECEIRA - Por que tanta gente que a gente conhece e nunca foi lá exemplo de bom comportamento, na falta de uma expressão melhor, resolveu de uma hora para a outra colocar a cama e o sexo nas urnas e empacou no território de uma moralidade medieval? Sem nos contarem que frequentaram o futuro e que não gostaram do que viram, milhões de pessoas nos gritam que é preciso adquirir, através de um voto, uma viagem só de ida para o passado. Sem terem memória ou registro desse lugar do passado para onde querem ir, batem nas urnas e dizem que lá é onde fica Passárgada.

Quinhentos anos antes de Cristo, o dramaturgo grego Ésquilo já assegurava: numa guerra, a primeira vítima é a verdade. Na batalha eleitoral brasileira que se trava hoje nas ruas e nas redes digitais, não só a verdade está morta e cremada. Quem morreu junto foi o argumento. Qualquer eleitor hoje abraçado à sua baciada de mentiras preferidas, prefere perder um amigo ou um familiar a “perder” um minuto do seu tempo para ouvir UM argumento que seja. Argumentos são animais peçonhentos que ameaçam um combo de convicções já embalado e etiquetado como um Brasil de amanhãs que cantam graças ao revólver de cabeceira prometido.

PIOR LUGAR - Voluntariamente, as pessoas resolveram ensurdecer se a opção é o risco de verem desarmarem-se seus castelos de mentiras, construídos na velocidade, na facilidade e na falta de pudor de inventar e manipular fatos dentro do zap e das bolhas. Como será explicar no futuro que, num então passado distanciado, lá em 2018, o melhor lugar para espalhar mentiras estrategicamente fabricadas e o pior lugar para exercer o senso de lógica era um fenômeno chamado grupo de família?

ESTRANHA - Nas teclas do celular, nas redes, nos grupos e, principalmente, nas urnas, milhões estão dando um salto histórico para trás, usando senhas recém-nascidas do presente digital, como pós-verdade, fake news e outros termos primos. O cenário da guerra, em números, será a única coisa fácil de descrever quando referirem-se à segunda semana de outubro de 2018: 49 milhões de votos para Bolsonaro; 31 milhões de votos para Haddad; 24 milhões de votos para os candidatos derrotados no 1º turno; 29 milhões de pessoas que não foram votar no 1º turno; 10 milhões de votos brancos e nulos. Quanto ao que estava acontecendo sob essa equação eleitoral, essa é uma pergunta que talvez só seja respondida daqui a milênios, por escafandristas em busca dos vestígios dessa estranha civilização chamada Brasil.

Malu Fontes é jornalista e professora de jornalismo pela Facom/UFBA

Opiniões e conceitos expressos nos artigos são de responsabilidade exclusiva dos autores.