Trinta anos esta noite

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  • Paulo Sales

Publicado em 5 de outubro de 2020 às 05:05

- Atualizado há um ano

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Revejo fotos de exatos 30 anos atrás, quando fui pela primeira vez ao Rio Grande do Sul. O rosto de menino, sonhador e impetuoso, eternizado numa expressão contida de assombro e felicidade. Na época, essa pequena aventura possuía – para aquele jovem bem-nascido de 20 anos – a dimensão de uma jornada a Marte. Ela me pôs em contato com experiências que subverteram a minha percepção sobre a vida, descortinaram o meu futuro e me fizeram repensar o que até então ansiava para mim mesmo. Mochila nas costas, polegar em riste pedindo carona e uma disposição interminável de conhecer, conhecer, conhecer.

Nenhum escritor me influenciou tanto quanto Jack Kerouac. Nem Hemingway, nem Fitzgerald, nem qualquer outro que veio depois foi tão importante na minha formação, como homem e como alguém que vive do que escreve. Entre tantos outros romances e contos (Big Sur, Os Vagabundos do Dharma, Viajante Solitário, Os Subterrâneos) despontava o On the Road, a bíblia beat que li tantas vezes. O chamado da estrada repercutia feito um mantra nos meus ouvidos. Precisava daquilo, e a vida de Kerouac me parecia o caminho a ser seguido. Um contraponto de audácia e destemor ao sentimento de vazio e inadequação que me habitava.

Não foram apenas as deliciosas aventuras regadas a álcool e anfetaminas de Sal Paradise e Dean Moriarty que me seduziram. Mas também o embate silencioso entre religiosidade e hedonismo que forjou a matéria-prima do escritor norte-americano, reproduzido com brilhantismo por Ann Charters em Kerouac – Uma Biografia, que me influenciou ainda mais do que o On the Road. Não fui o mesmo depois de ler esses livros e, principalmente, depois da primeira viagem ao sul. Ali, vislumbrei uma epifania, que de certa forma procuro ainda hoje, seja em Paris, Amsterdam ou mesmo em alguma ilhazinha da costa baiana.

Nestes dias de solidão, longe da minha família e da minha cidade, tenho pensado muito na viagem de 1990 e na cisão que ela representou. O que resta daquele rapaz magrinho e moreno no homem maduro, de cabelos grisalhos, que hoje rabisca esta crônica? Parece tudo tão perto e ao mesmo tempo tão remoto, como um poema escrito num guardanapo para uma namorada que nunca mais vi. O que restou daquele destemor, daquele anseio por desbravar a vida, daqueles versos que borrifavam lirismo e solidão? Não sei a resposta. Aliás, não sei nem quem sou, para além do documento de identidade.

O chamado da estrada ficou para trás. Mas todos aqueles lugares, todas aquelas caronas, todas aquelas pessoas permanecem intimamente guardados, embalados por um sentimento de carinho e gratidão. Eu mudei, todos mudamos. Curiosamente, passei a amar o jazz, que Kerouac tanto louvou em sua obra-prima, impregnada em sua prosódia dos improvisos de Bird e Dizzy. Acima de tudo, me dei conta de que nenhum escritor, por maior que tenha sido – e o velho Jack definitivamente não foi – deve servir de modelo para qualquer existência. Não segui a trilha do excesso, que ele percorreu como um peregrino ensandecido até morrer de cirrose, aos 47 anos. Fiquei no meio do caminho, contemplando o abismo com um misto de horror e fascínio. Melhor assim.