Um artigo para ninguém ler

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  • D
  • Da Redação

Publicado em 15 de janeiro de 2022 às 11:00

- Atualizado há um ano

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Hoje, não sei escrever sobre nada que possa interessar a você. Tirei uns dias na beira do mar e meus assuntos são se a maré subiu ou desceu, quantas latas de cerveja vou comprar, que horas vamos jogar UNO ou dominó. Tentei tomar a terceira dose aqui mesmo, mas o posto estava lotado, de forma que dei marcha ré com medo de ganhar o combo vacina/covid/h3n2 de uma vez só. Eu tava de N95 (daquela boazona que veda tudo), mas não confiei nem assim. Quando voltar pra casa vejo isso, inclusive porque meus dias tirados continuam sendo duas coisas normais: trabalhando em home office e no mesmo isolamento onde estou há dois anos. Já acostumei, nem ligo mais não. Acho que passei a "ser" isolada, não é mais "estou".

Mais tarde, deve passar o homem que vende lambreta, preciso ficar atenta. Ontem, enquanto cozinhava ouvindo "música velha" e tomando um vinho (meio seco, a moça do mercado mandou errado, o adocicado dá um enjôo, mas tudo bem) lembrei de um aparelho de som portátil (daqueles: rádio e toca fitas com duas entradas) que ganhei num natal dos anos 90 e trouxe pra cá. Bem na hora que Marina cantou "não me beije que eu tenho veneno" veio na cabeça a esteira, a lua, o mar, o aparelhinho prateado tocando essa música e o vento. Não gosto de vento, mas aquele era bom. Também vieram os beijos na boca, os agarramento tudo, porém não há nada que me faça lembrar quem era que eu tanto beijava naquela noite de verão. Nem pistas. Ideia não faço, de jeito nenhum.

Algum "inho", certamente. Naquele tempo, todo mundo era "inho" ou "inha". Da época, lembro de Afonsinho, Wilsinho, Ricardinho, Marcinho, Serginho, Miltinho e Niltinho, só aqui numa contabilidade rápida. Como se não bastasse o sufixo em tudo que era amigo, colega e "ficante", ainda virei "Inha" e o ele da época "Inho", no primeiro namoro "sério" que começou aos 14 anos. Uma cafonice que eu achava linda e hoje me faz rir até com certo carinho. Negócio meloso que culminou num urso de pelúcia que ganhei, com cheiro de um perfume da época que chamava Giovana Baby. Nunca suportei bicho de pelúcia e "Inho" me apronta uma dessa. Ali foi demais pra mim. Terminei (não só por isso) e soube que "Inho" quebrou um copo onde - dizem - ele estava tomando Nescau (!), se cortou e escreveu meu nome na parede. Se é verdade, não sei. Se for, espero que tenha se curado desse problema de excesso de drama, automutilação e abuso psicológico. Hoje, sei o nome de tudo. Ele tinha 16. Eu usava anéis de fibra de coco, franja de cortininha, biquíni "asa delta" e brincos com lua e estrela feitos de osso.

(Tivesse uma foto aqui, publicava pra você rir.)

Trouxe um livro importantíssimo que preciso ler, mas minha cabeça parece cachorro chamando pra brincar. O livro é sério, não vou conseguir. Este é um artigo para ninguém ler porque sou incapaz de relevâncias e seriedades por esses dias. Veranear é um verbo que sobrevive, apesar de, e me encontra igualzinha, todo ano, com ou sem pandemia. É um reset, sempre foi. Não tem a menor importância se vou engordar com cerveja e lambreta, já abandonei umas duas conversas sérias e tenho certeza absoluta de que a minha teoria sobre esse embrutecimento (para uns), essa tristeza (para outros) e esse desespero (pra mais gente ainda) está corretíssima. Desenvolvi outro dia, fez sentido pra dois amigos, vou contar pra você só pra seu tempo aqui não ser todo perdido com banalidades totais.

Aqui, olhando de longe, fica ainda mais evidente a inutilidade de saber as identidades e histórias pessoais das vítimas do acidente em Capitólio, por exemplo. Também o motivo pelo qual a criança foi morta com 42 facadas. Mais do que a inutilidade, fica claro o quanto nos faz mal. Ajuda em quê saber desses detalhes? Em nada e ainda atrapalha. Não fomos feitos para saber cada nuance de todas as desgraças do mundo, nenhum ser humano tem estrutura para isso que nos é oferecido, em doses abundantes, todos os dias, como se fosse normal. Não serve pra nada, não é informação e eu já perdi a conta da quantidade de gente que bloqueei por me mandar foto de defunto pelo Whatsapp. É se machucar sem motivo, gratuitamente, por um "prazer" que nos adoece cada vez mais.

Inclusive, deixe eu lhe dizer uma coisa: o mundo não tá acabando não. "O mundo" nem existe no singular. O mundo é muitos e plural. Tem gente inteligente, gostosa e viva por aí. Tem minha avó que morreu aos cem anos sem nunca ter tido uma doença grave, nem dor nenhuma, nem nada. Tudo isso comendo chocolate e bebendo guaraná. Tem muita saúde física e mental, apesar dos "influencers" da área "de saúde" apresentado doenças que você nem sabe que existem, mas depois de assistir esses vídeos quer fazer o exame e se consultar. Tem corpo são mesmo sem check-up, tem relações descomplicadas, tem papos onde se escuta e se fala que nem aquele que me fez dormir quase de manhã, ontem, morrendo de dar risada. Tem solidariedade sem sofrer junto e esse é o sentido da palavra. Agora, se você tomar pra você todas as desgraças que acontecem em todos os mundos, seu mundo acaba mesmo e bem rápido.

Sempre existiu de tudo, até pandemia que não é nenhuma novidade. E vai passar, como tudo passou e ninguém achou que era o fim do mundo porque não tinha "ao vivo" nem Whatsapp. Meu amigo que é médico disse que até o fim desse semestre a covid já virou endemia, olha que notícia boa! Marcamos até São João, quem sabe? Apesar disso, me pediu  que eu cuidasse ainda mais do meu filho que logo será vacinado. Ele também sabe que essa Ômicron é o demônio na capacidade de infectar. Tudo bem, a praia tá vazia, os amigos estão só mesmo no celular. Faz parte. Fico triste? Eu que não. Como me disse Rose, "você tem intolerância a drama" e tenho mesmo. Além de me afastar das "vítimas profissionais", ensino à única pessoa que eu pari que o sentido da vida é se divertir no percurso. Toda vez que ele pergunta eu digo isso: "se divertir, meu filho, a gente tá aqui pra se divertir", que é exatamente o que eu acho. Por hoje é só, inclusive. Preciso ir ali não fazer atividade física, não ler o tal livro, não ler sobre nenhuma desgraça e, principalmente, brincar de não pensar seriamente em nada.

Flavia Azevedo é articulista do Correio, editora e mãe de Leo