Um deus dorme tranquilo em nossos erros

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  • Kátia Borges

Publicado em 20 de novembro de 2021 às 07:00

- Atualizado há um ano

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É com certa estranheza que escrevo esta crônica com o fito de informar ao respeitável público sobre o sumiço súbito de folhas inteiras do seu livro predileto. Para ser mais exato, desapareceram do miolo 144 páginas. A mesma quantidade de meses que, enfileirados um atrás do outro, somariam um ciclo completo no calendário, isso se deixarmos de lado os anos bissextos.

Em minha defesa, anjo, posso afirmar que seu livro esteve o tempo todo bem guardado, ali onde a memória faz a curva. Seguro, insisto em justificar, em um local bastante seguro. Mas eis que do nada, ao lê-lo há alguns minutos, reparei que do breve prólogo se pula logo ao longo epílogo. E, entre os dois, há espaços em branco tão volumosos quanto o Himalaia.

As palavras que restaram? Bom, foram cortadas ao meio, ao modo dos magos e carrascos, numa espécie — penso que rara — de punição ou ilusionismo. Sabe quando íamos ao circo e um mágico serrava um corpo, encarcerado numa caixa, diante de nossos olhos? É quase certo que ele reapareceria inteiro em outro canto do picadeiro, e nós realmente acreditávamos nisso.

Até investiguei capa e contracapa à cata de indícios, e não há trechos escondidos como se fossem o mapa de um tesouro enterrado na gramatura. Todavia, e é preciso acrescentar, admito que frases exasperadas saltaram de cartolas feito coelhos. Lembra o conto de Cortázar? Não sei o que fazer com esses bichos fofos. Alguém sugeriu despachar a ninhada para a Calle Suipacha.

Não pergunte em que ponto “comigo me desavim”, como no poema de Sá de Miranda. Talvez, no sumidouro do seu livro, um dos personagens sinta uma dor deselegante. No colofão arqueia o corpo e o golpeia o riso frouxo de um outro sem culpas. Esse que repousa, a cada noite, por oito horas, seguro de ter feito a coisa certa. Não me tome por perfeito, em absoluto.

Logo eu, que duvido dos que dizem não sentir remorsos, que creio em um deus que dorme tranquilo em nossos erros, que vejo a santidade como o habitat natural dos vacilos. Compartilho com um duplo esse mistério. Em Oslo, ele atravessa a Karl Johans Gate sem sequer olhar para os lados e alcança em segurança o passeio. Nem é preciso sorte para isso.

Kátia Borges é escritora e jornalista