Um dos maiores autores da história louvou e se declarou à Bahia, mas ela nem tchum

Pequeno monumento na Barra é homenagem isolada ao escritor austríaco Stefan Zweig, autor de 'Brasil, País do Futuro'; saiba o que ele disse sobre nós

Publicado em 20 de outubro de 2019 às 03:00

- Atualizado há um ano

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Gramado onde fica efígie de Stefan Zweig é ponto de descanso da galera no Porto por Foto: Arisson Marinho/CORREIO

O romancista e biógrafo Stefan Zweig em foto tirada para sua carteira de identidade brasileira (Foto: Arquivo/Casa Stefan Zweig) “Com essa cidade teve início o Brasil e, com direito podemos dizê-lo, a América do Sul”. É com tal moral que o vienense Stefan Zweig, escritor mais lido, adaptado e paparicado de seu tempo, apresenta Salvador ao mundo no livro ‘Brasil, País do Futuro’, de 1941. A frase abre o capítulo ‘A Bahia - Fidelidade à tradição’, um dos três dedicados a esta cidade-nação no bloco ‘Voo Sobre o Norte’, com escalas seguintes em Recife e Belém.

Por coincidência, cumpri o mesmíssimo itinerário há um mês: saindo de Salvador, passando rápido em escala por Pernambuco, pousei no destino final, a capital paraense, de onde tirei elementos para compor a reportagem “O que é que Belém tem?”, publicada neste CORREIO domingo passado.

Me apaixonei por Belém, Recife-Olinda idem (amor antigo), mas Zweig não deu muita bola pras duas. Poucas palavras dedicou à pernambucana, e apenas loas tímidas com pouco aprofundamento para a paraense. Antes tinha circulado pelo Rio de Janeiro — a capital definiu como a cidade mais encantadora do mundo —, São Paulo (a força do café) e Minas (o brilho do ouro), mas foi a Bahia que mais o impressionou. Para demonstrar essa simpatia quase amor, caprichou na tinta.

Só para efeito de comparação, na versão em e-book da obra — que dá pra resumir como um elogio geral ao Brasil, especialmente à sua “democracia racial” e suas potencialidades —, são duas pagininhas para Pernambuco e outras sete para o Pará, divididas com algumas digressões.

A minha ideia aqui é resumir os principais trechos das 21 páginas dedicadas a Salvador — comparada por ele com Atenas, Alexandria e Jerusalém, tal qual elas “um santuário da civilização” — e entorno. Zweig ainda deu um rolé no Recôncavo e, em Cachoeira, caiu de boca nos charutos, um vício confesso. Sandálias da humildade sobre a efígie de Stefan Zweig, um dos maiores escritores da história, no Porto da Barra (Foto: Arisson Marinho/CORREIO)  Bróder de Freud (com quem vivia trocando ideia) e Rimbaud, autor de biografias de Balzac, Dostoiévski, Dickens, Maria Antonieta, Nietzsche e Tolstoi, entre outros, a vinda do também romancista e dramaturgo judeu foi um acontecimento no Brasil, para onde fugiu na Segunda Guerra.

Os nazistas mandaram queimar seus livros em praça pública e, quando parecia que Hitler dominaria o mundo, em 1942, o escritor e sua esposa, Charlotte Altmann (Lotte), cometeram suicídio em casa, em Petrópolis (RJ). O local hoje é um museu.

Na carta de adeus à vida, deixou um “carinhoso agradecimento a este maravilhoso país” por “tão gentil e hospitaleira guarida”. Em nome dos baianos, que até aqui só lhe renderam homenagem num discreto monumento no Porto da Barra, sem a devida citação à paixão que nos dedicou, trago também um carinhoso agradecimento, e reproduzo algumas de suas palavras para conhecimento.

*** Veneração Com essa cidade teve início o Brasil e, com direito podemos dizê-lo, a América do Sul. Nessa cidade levantou-se o primeiro pilar da grande ponte lançada sobre o Atlântico, nela originou-se de matéria européia, africana e americana a mistura nova que ainda fermenta eficazmente. Veneremos, pois, a Bahia antes de a admirarmos! Essa cidade tem a prerrogativa de ancianidade entre todas as da América do Sul.

Com seus quase 400 anos, com suas igrejas, sua catedral e seus castelos, a Bahia é para o Novo Mundo o que para nós europeus são as metrópoles milenárias, o que para nós são Atenas, Alexandria e Jerusalém: um santuário da civilização. E, como ante uma fisionomia humana, sentimos respeitosamente diante dessa cidade que ela tem um passado glorioso.Na América do Sul nada posso comparar com essa atitude altiva e majestosa com que a Bahia olha por cima do seu porto e seus castelos para o longe, para o Atlântico.A Bahia está presa ao passado. (...) Todavia não abdicou, conservou sua posição e, com esta, uma incomparável dignidade. ‘Rainha viúva de Shakespeare’ A atitude da Bahia é a de uma rainha viúva, de uma rainha viúva grandiosa como as das peças de Shakespeare. (...) Altiva e ereta olha do alto para o mar, no qual, séculos atrás, todos os navios se dirigiam para ela; ainda traz os antigos adereços, constituídos por suas igrejas e sua catedral, e essa dignidade de atitude continua a existir na sua população.Podem as cidades mais novas, podem o Rio, Montevidéu, Santiago, Buenos Aires ser hoje mais ricas, mais poderosas, mais modernas, mas a Bahia tem sua história, sua civilização própria, seu modo de vida próprio.A Bahia é uma cidade conservadora, uma cidade fiel à tradição: protegeu seus antigos monumentos contra a apressada invasão do que é novo e, através dos séculos, conservou íntegra, exteriormente, sua fisionomia e, interiormente, sua tradição. (...) A quem se aproxima da Bahia pelo mar, não se apresenta ela diferente do que o fazia no tempo dos vice-reis e dos imperadores.

Ela não está empobrecida hoje, não decaiu. Estacionou apenas, e isso lhe dá a beleza que têm todas as cidades que passaram decênios e séculos sonhando, como Veneza, Bruges, e Aix-les-Bains. (...) Permaneceu ela o que era: a cidade do antigo Brasil português, e só nela percebemos a origem do Brasil e a tradição secular deste país.

[[galeria]] Cenários Há ruas asfaltadas e muito perto delas ruas calçadas com pedras brutas; na Bahia podemos, num período de dez minutos, estar em dois, três ou quatro séculos diferentes, e todos eles parecem genuínos. O verdadeiro encanto da Bahia reside no fato de nela tudo ainda ser genuíno e não propositado; as chamadas “coisas dignas de serem vistas” não se impõem ao forasteiro, acham-se incorporadas de um modo imperceptível, no conjunto.

Velho e novo, presente e passado, luxuoso e primitivo, 1600 e 1940, tudo isso se une para formar um só quadro, emoldurado por uma das mais tranqüilas e aprazíveis paisagens do mundo.Por toda a parte nessa cidade sentimos a tradição. A Bahia, ao contrário de todas as outras cidades brasileiras, possui um traje próprio, uma cozinha própria e uma cor própria.De todas as cidades do Brasil foi ela a que mais fielmente respeitou a tradição. Só pelas suas pedras e ruas se compreende a História do Brasil, só essa cidade nos permite compreender como de Portugal nasceu o Brasil. Baianas No permanente pitoresco o que há de mais pitoresco são as baianas, as pretas gordas, de olhos escuros, com seu vestuário especial. (...) Não é comparável com nenhum outro, não é africano, não é oriental, não é português, mas sim, os três ao mesmo tempo.A imponência dessas baianas propriamente não está no traje, está no garbo com que o usam, no seu modo de andar, nas suas maneiras. Sentadas no mercado ou na soleira duma porta, dispõem elas a sua saia como se fosse um manto real, de modo que parecem estar sentadas dentro duma enorme flor.Essas baianas têm no andar a mesma majestade que apresentam quando assentadas. Carregam sobre a cabeça uma arroba, cestos com roupa, peixe, ou frutas; é um prazer vê-las andarem com isso pelas ruas, de pescoço altivamente erguido, com as mãos nos quadris, com o olhar sério e desembaraçado. Lavagem do Bonfim Tive a feliz oportunidade de ver a do Senhor do Bonfim. O Senhor do Bonfim tem na Bahia uma igreja, que com uma encantadora vista está situada numa colina. (...) O grande largo é destinado aos muitos milhares de pessoas que, na maior alegria, passam as noites da semana de festas ao relento.Um dia santo na Bahia não é apenas um número impresso em vermelho no calendário, torna-se obrigatoriamente dia de festa para o povo, dia de espetáculo, e a cidade inteira empenha-se em, de qualquer modo, festejá-lo.Toda a fachada da igreja acha-se profusamente iluminada à eletricidade e à sombra dos coqueiros estão armadas numerosas barracas, nas quais se vendem comidas e bebidas; pretas baianas, acocoradas na relva junto de seus fogareiros, regalam o público com suas variadíssimas guloseimas baratas, e atrás delas dormem, no meio daquele banzé, seus filhos.

Hoje constitui ela uma festa da cidade inteira e uma das mais impressionantes que vi em toda a minha vida. (...) É verdadeiramente impressionante a primitividade desse cortejo.

Os cavalos são cobertos com colchas de renda, as rodas dos veículos são enfeitadas com papel de seda de várias cores, prateiam-se os cascos dos burros e douram-se os barris para a lavação, que são barris comuns do mercado. Zweig e a esposa, Lotte, em Salvador, ano de 1940. À direita, o jornalista e professor baiano D'Almeida Vitor, indicado pelo Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) do Estado Novo para ciceronear o casal (Foto: Arquivo/Casa Stefan Zweig) Mas o que torna imponente o préstito são as baianas que, com fervor religioso e majestade, carregam sobre a cabeça jarras com flores durante todo o longo trajeto, com um sol intenso. Essas rainhas pretas, que a fim de completarem seu traje colorido, ainda pediram emprestado aqui um lenço rendado e acolá um colar, radiantes de felicidade por servirem ao Senhor do Bonfim e serem admiradas pelo povo, dão uma impressão aparatosa.

Em carroças muito primitivas estão sentados os rapazes, cada um com uma vassoura sobre o ombro, e sem cessar toca uma banda de música desarmoniosa, mal ensaiada. Tudo isso brilha e se agita na claridade intensa, e por trás está o mar azul e por cima o firmamento, também azul. É uma exuberância de cores e de alegria.

Já encontramos a igreja cheia. Mulheres, homens e inúmeras crianças pretas e risonhas estavam ali aglomeradas à espera do cortejo. (...) Quando o primeiro tiro de morteiro avisou que numa curva do caminho aparecera o cortejo, deu-se uma dessas explosões de júbilo que raramente eu vira. As crianças bateram palmas e sapatearam de alegria, os adultos gritaram: “viva o Senhor do Bonfim”, e a igreja inteira retumbou durante um minuto esses brados de júbilo.Não posso deixar de confessar que alguma coisa dessa sofreguidão e desse entusiasmo se transmitiu a mim.Percebi nitidamente uma grande sofreguidão naquela gente, que parecia um enorme animal colorido, pronto a lançar-se sobre sua presa. Afinal chegou o momento desejado. Com jeito e energia alguns policiais fizeram a multidão afastar-se para poder ter início a lavagem do templo.

E subitamente teve início na igreja uma atividade que parecia realizada por uma centena de diabos irrequietos. (...) Era um verdadeiro delírio, a mais violenta histeria coletiva que até hoje tive ocasião de observar. (...) Havia algo de tão violentamente arrebatar e contagioso nessa lavação cheia de gozo que não tive certeza de que, se me achasse no meio daqueles indivíduos exaltados, não agarrasse uma das vassouras.Foi verdadeiramente o primeiro acesso de loucura coletiva que vi e que ainda se tornou, mais inverossímil pelo fato de ocorrer numa igreja, sem uso de álcool, de estimulantes, sem música, e em pleno dia, sob um céu magnífico e radiante.Mas o segredo da Bahia está no fato de nela, por influência hereditária, o que é religioso misturar-se misteriosamente no sangue com o que é gozo. Adeus Com pesar, pois a Bahia é muitíssimo bonita, muitíssimo sedutora, embarco no avião que me leva para o norte, para a cidade de Pernambuco ou Recife ou Olinda. Qual dos nomes deverei usar?