Um navio ancorado no espaço

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  • Kátia Borges

Publicado em 16 de fevereiro de 2020 às 05:15

- Atualizado há um ano

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Aqui está, ela disse, ao dar de cara com a imagem da escritora que amava desde a infância. Nunca visitava aquele cômodo, espécie de cofre de tudo que havia de antigo na casa. No adiantado da noite, nenhum ruído na vizinhança. Apenas o barulho que suas mãos faziam, abrindo e fechando caixas e gavetas. Insônia. Dessas de arrumar e desarrumar as coisas, esperando achar, por acaso, aquilo que procurava.

Na fotografia, recorte de uma revista de literatura, uma mulher sorria, cabelos louros caindo sobre a testa. Um semblante vincado, porém, infantil. Repousava as duas mãos sobre um livro, como se não soubesse o que fazer com elas. A legenda descrevia o sucesso do lançamento. Belo riso, pensou, como se o tempo nem fizesse cócegas. Mas faz, e ela sabia, tantos anos haviam se passado desde que a conhecera.

Seus dedos tamborilavam na capa do exemplar raríssimo que levava consigo. Sem coragem para olhar os outros, lia e relia o prefácio, conferia o próprio nome, escrito no papel que pendia do novo livro da escritora. Artifícios para disfarçar a ansiedade na fila de autógrafos. Conversaram tão pouco naquele primeiro dia. Era março? Quase. Finalzinho de um fevereiro mais chuvoso que de costume.

Ela esperava uma notícia importante, ou talvez que abril chegasse, com a velha fama de “o mais cruel dos meses”. Ah, sim, ela aguardava que fevereiro passasse, com a sua alegria ruidosa. O ano inteiro, enfim, impondo o ritmo da normalidade. Como se o Destino cravasse as unhas compridas nas costas do calendário e o arranhasse de cima a baixo. Ela havia criado coragem, finalmente. E ali estava.

O presente oferecido à autora predileta. A expressão de surpresa desenhada em seu rosto diante do resgate do primeiro livro, lançado há duas décadas. O pedido para que deixasse um contato no verso do papel com seu nome. A dedicatória no novo romance, o desenho de um barco a vela. “Navio ancorado no espaço”, ela disse. E, então, como se fosse a coisa mais natural do mundo, o convite para uma conversa.

Seria “um dia desses”. Sim, “um dia desses”. A leitora predileta, finalmente, personagem de romance. Conversariam, então, sobre seus medos. Morrer. Sofrer. Parir um filho. Talvez, quando ela voltasse àquela cidade, tão distante de Londres, onde vivia, de onde saia raras vezes. E ela lhe diria que escreve sempre, que escreve mesmo quando não parece, mentalmente desenhando enredos como aquele.