Uma coisa doida que nos salve

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  • Kátia Borges

Publicado em 29 de setembro de 2019 às 05:00

- Atualizado há um ano

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Quando Mineirinho tombou, aos 28 anos, varado por 13 tiros de metralhadora, em maio de 1962, encontraram no bolso de sua camisa uma oração a Santo Antônio. José Miranda Rosa era então o bandido mais procurado do Rio de Janeiro. Trezentos homens saíram em sua caça naquela noite. Os jornais diziam que possuía sete vidas.

Também diziam que, nos morros da Mangueira e da Providência, ele agia como uma espécie de Robin Hood. Talvez a informação justifique o fato de o corpo ter sido cercado por pessoas carentes, segundo registros da época. Um mês depois de sua morte, na revista Senhor, Clarice Lispector publicaria uma crônica sobre ele.

Essa mesma crônica, 57 anos depois, ainda nos ronda e nos assombra. “Nós, os sonsos essenciais”, como a cronista descreve com ironia. Nós que, assaltados pela ideia de segurança, mais e mais, nos aproximamos da barbárie. Sobre esse texto, alguém escreveria: “o dia em que Clarice Lispector defendeu um bandido”.

Não que o defendesse. Muito a seu modo, o que Clarice defendia em Mineirinho, e em sua crônica, era a humanidade – ainda que ela pareça se confundir sobre o que sente, e o revele, explicitando o acolhimento à possível confusão que os sonsos sentem. Não entender nos protege de uma desorganização que nos salvaria?

O que somos é muita gente. Minha avó comia com a mão, eu aprendi a usar talheres. Minha mãe não temia as pessoas, eu checo as portas, mesmo após girar as chaves, e me assusto se a moça que pede dinheiro para o café bate no vidro do carro. Confiante no que sou – e ela sabe –, como um pássaro que pousa perto.

A beleza e o horror desorganizam a nossa sonsa civilidade. Chegar a Veneza sem saber ao certo o modo de apreender suas paisagens, porque há um ver que não se rende, porque há um ver que não se resume aos olhos. Sentir, na pele, cada disparo contra o outro – uma, treze, oitenta e quatro vezes –, porque, como Clarice escreve, há alguma coisa doida em nós que entende, ainda que não nos salve.