Uma mudança para a vida inteira: conheça riscos da cirurgia bariátrica

Procedimento cresceu mais de 80% em 8 anos no país

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  • Alexandre Lyrio

Publicado em 17 de novembro de 2019 às 05:05

- Atualizado há um ano

. Crédito: Betto Jr

Ao pisar os pés na passarela, um filme passou na cabeça da inspetora de qualidade Roberta Leão, 37 anos. Um filme que tem como roteiro sua cirurgia de redução de estômago, cheio de momentos de superação, alegrias e vitórias, mas também de medo e quase morte. A diferença desse para os outros filmes é que ele tem início e meio, mas jamais terá um fim.

Uma das finalistas do concurso Miss Bariátrica 2019, ainda que satisfeita com os resultados do procedimento, Roberta vai ter que conviver com as consequências dele para sempre. É assim com as outras candidatas do concurso e com todas as pessoas que fazem a cirurgia. Independente das complicações que teve no pós-cirúrgico – Roberta ficou internada na UTI por dois meses – o acompanhamento tem que ser contínuo e os resultados negativos são reais.

Como Roberta, a maioria dos que se submeteram à cirurgia bariátrica relata problemas persistentes como queda de cabelo, fragilidade óssea e dentária, implicações psicológicas como depressão e transtornos de ansiedade, pedra na vesícula, a necessidade contínua de tomar vitaminas e a substituição da compulsão por comida. Cada paciente, seja ele recém-operado ou com mais de duas décadas de cirurgia, enfrenta pelo menos um desses problemas. Sem falar no conhecido “dumping”, um mal-estar que vai da fraqueza à taquicardia causado pela ingestão de determinados alimentos. Roberta veste antiga farda (Foto: Betto Jr/CORREIO) Apesar de tudo, Roberta não se arrepende. “Hoje me olho no espelho e tenho orgulho. Tenho uma vida melhor, mesmo com os problemas que a gente tem que enfrentar. Redução de estômago não é mágica. Quem fizer tem que saber dessas consequências”, avisa Roberta, que com a perda de peso diz ter superado dores no joelho e na coluna, além de apneia do sono grave. Agora, porém, tem outros problemas para administrar.   “Tenho que tomar vitamina sempre. Há pouco tempo tive anemia novamente, precisei tomar um medicamento venoso. Também tenho queda de cabelo e fiz cirurgia para tirar uma pedra na vesícula”, enumera. Para Marcos Leão, cirurgião bariátrico baiano e presidente da Sociedade Brasileira de Cirurgia Bariátrica, não tem como falar das consequências e riscos de um procedimento sem fazer o contraponto com os riscos da obesidade grave. 

“Todo tratamento tem risco e você trata para eliminar ou diminuir um outro risco. Os benefícios são muito grandes”, diz o cirurgião. Segundo ele, nos anos que seguem à operação, o tratamento cirúrgico leva a uma redução entre 40% e 60% das mortes causadas pela obesidade. “Um último estudo mostra que a quantidade de infartos é 33% menor, a de derrames 28% menor, as insuficiências cardíacas 68% menor. É preciso trazer esse contexto”, afirma o médico. (Fonte: Sociedade Brasileira de Cirurgia Bariátrica) Segundo o cirurgião, as taxas de complicações graves e mortes após a cirurgia bariátrica são baixíssimas. Nos serviços considerados de excelência, a taxa de morte não passa de 0,2%, inclusive na Bahia. “As cirurgias de vesículas, por exemplo, têm taxa de mortalidade de 0,5%”, compara. No caso das complicações, esse número aumenta. “As complicações ocorrem em mais ou menos 3% dos casos, sejam elas mais simples ou mais graves”. Mas, o maior problema da bariátrica não são as complicações graves ou as mortes, como aconteceu recentemente com Jesus Sangalo, irmão da cantora Ivete Sangalo. As consequências negativas quase certas do procedimento, levadas para a vida inteira, é que tornam o paciente bariátrico um paciente que inspira cuidados.     Acompanhamento  Claro, dizem os médicos, os problemas são amenizados pelo acompanhamento contínuo com equipes multidisciplinares. Ainda que esteja tudo bem com quem fez a bariátrica, o paciente precisa cumprir o protocolo de tratamento psicológico, nutricional, endócrino e etc. Primeiro com retornos quinzenais, depois mensais, semestrais e por aí vai. Até o fim. Se isso não for seguido, as chances de problemas sérios surgirem aumentam. 

“As pessoas estão fazendo a bariátrica achando que vão enfrentar um pós-operatório como outro qualquer, tomando alimento no copinho por um período, e depois vai seguir normalmente. Não! A pessoa vai ter que ter cuidados com a saúde para o resto da vida”, alerta a nutricionista Paola Altheia, ativista da área da de “health at ever size”, algo como “saúde em todos os tamanhos”.  

“É ferro, é vitamina, é atividade física. Tem gente que tem relação disfuncional com a comida e isso não se resolve com um emagrecimento abrupto”, lembra. “Eu nunca assinei um laudo indicando cirurgia bariátrica. Uma pessoa gorda não necessariamente está doente. Tem que se esgotar todas as alternativas não cirúrgicas. Quem passa por esse procedimento deve estar em uma situação clínica bastante complicada, com comorbidades associadas”, diz Paola, acreditando que nem todos serão dispostos a enfrentar as consequências negativas. 

O dumping é mais comum. Mesmo os pacientes que não enfrentam os outros problemas, têm que encarar ao menos o dumping. A técnica de enfermagem Emanuela Menezes, 37 anos, Miss Bariátrica 2018, garante que não enfrentou problemas após a cirurgia. “Não tive nada!”. “Nada mesmo?”, perguntamos. “Nada! Quer dizer, tenho o dumping. Todas têm damping, né? Mas isso é tranquilo. Dura de dez a 15 minutos. Acostuma”.

Histórico psicológico Fala-se que a cirurgia bariátrica também mexe muito com a cabeça. Médicos e psicólogos divergem um pouco sobre o assunto. Há relatos de pacientes que “dão uma pirada”, como disse um deles, após a cirurgia. Além de uma avaliação criteriosa do histórico psicológico do paciente, o acompanhamento psicológico é fundamental para que, por exemplo, não haja uma substituição da compulsão por comida.

“Minha compulsão é por vestidos. Passei a comprar muitos vestidos depois que fiz a cirurgia. Até hoje eu compro escondido do meu marido”, admite a miss bariátrica 2018. “Levo isso de forma tranquila. Trabalho com minha psicóloga. Qual mulher vestia 56 e hoje veste 38 e não vai ter compulsão por roupa? Ainda bem que minha compulsão é por roupa. Há outras pessoas com compulsões mais severas, né?”.   De fato, dizem os psicólogos, há casos que transferem a compulsão por comida para álcool e outras drogas. “Não conseguia comer quase nada durante eventos e passei a beber mais. Também comecei a usar outras drogas e já me internei duas vezes. Hoje estou mais tranquila, mas é sempre um risco”, disse uma professora da rede particular de ensino de Salvador, que preferiu não ter o nome divulgado.

“A obesidade está normalmente relacionada com o ato compulsivo de comer, hábito que o indivíduo costuma conviver a maior parte da vida. Rapidamente, esse hábito é fisiologicamente rompido com a cirurgia. Mas, psicologicamente, o padrão continua ali”, explica a psicóloga Laryssa Pitanga, especialista em cuidados paliativos. O presidente da Sociedade Brasileira de Cirurgia Bariátrica contesta que os pacientes operados substituam as compulsões. “Há muito mito e desinformação em torno disso. O que existem são pessoas compulsivas para várias coisas”, afirma Marcos Leão.    

Arrependimento Mas, porque muita gente deixa o tratamento? No caso da professora de educação física Telma Teodora Souza Cruz, 52, que fez a cirurgia há 15 anos, o grande problema é que as pessoas precisam ter dinheiro para seguir o tratamento a vida inteira. “Você precisa ter grana para fazer o acompanhamento durante anos. Os planos de saúde não bancavam isso na minha época e recentemente voltaram a botar dificuldade”, afirma Telma, que se diz arrependida. 

A educadora física não conseguiu, por exemplo, fazer cirurgias reparadoras (para retirar o excesso de pele), necessárias em muitos casos. “Se você não tirar essa pele, sua autoestima vai piorar. Eu emagreci e fiquei cheia de pele. Tive problemas sérios com minha filha pequena. Ela ficava dizendo que eu tava feia”. Como Telma melhorou isso? Engordou novamente. 

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Uma coisa é fato. Com todos os problemas, há muita, mas muita gente satisfeita com a cirurgia bariátrica. Boa parte dessas pessoas, ao menos a maioria das que ouvimos, traz o fator estético (e consequentemente a autoestima) como o ponto mais forte. Uma autoestima que carrega em si o alívio pela diminuição da pressão social ou superação de dificuldades impostas pelo comércio, por exemplo.   “Eu superei os olhares maldosos. Eu superei o fato de entrar em uma loja e não conseguir achar uma roupa que coubesse em meu corpo. Porque antigamente eu vestia 54, hoje visto 38. Eu pesava 112 Kg e hoje tô pesando 65 kg. É uma grande vitória eu escolher as roupas e elas não me escolherem. É indescritível”, disse a Miss Bariátrica.    Mas, isso é arriscado, diz a psicóloga Laryssa Pitanga. “A forma como o indivíduo lida com o processo pós-cirúrgico está diretamente ligada ao fator emocional, isso pode tornar a experiência boa ou não. Ou seja, apenas alcançar o corpo desejado não é a ponte para deixar de se perceber como alguém inferior, pautado em crenças de desamor, acreditando não ser atrativo e amado, por exemplo”.

Emanuela, que fez a cirurgia há quatro anos, segue com o tratamento psicológico. “Eu e meu marido fizemos tratamento psicológico por dois anos. Ele para aceitar a nova mulher, cheia de autoestima, e eu para aceitar meu corpo novo. Essa sou eu?”, perguntou Emanuela. 

Poucos relatos trazem melhorias na saúde nos seus discursos, como o da fotógrafa Mônica Caldas, 41 anos. Como acontece em alguns casos, ela teve que engordar para fazer a cirurgia, o que é contestado por muita gente. Mas, Mônica se livrou da apneia do sono em estágio grave, das dores nos dois joelhos e de uma hérnia de disco em desenvolvimento. “Não tinha condições nem de amarrar o tênis. Entrei num quadro depressivo que me levou à fobia social”, lembra.   

“Tá valendo a pena cada fio de cabelo que cai”, diz a fotógrafa, que também sente os enjoos causados pelo dumping. Imagine, se até para Roberta, que passou dois meses na UTI, valeu à pena. No filme que passou pela sua cabeça quando ela pisou os pés na passarela, estavam as cicatrizes que guarda no abdômen de cirurgias que salvaram sua vida após as complicações da bariátrica. Ainda que essas cicatrizes sejam visíveis, uma outra cirurgia também marcou para sempre sua vida. Para o bem e para o mal.