Uma nódoa no tecido da civilização

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  • Paulo Sales

Publicado em 2 de novembro de 2020 às 05:00

- Atualizado há um ano

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O atentado em Nice, ocorrido na última quinta-feira, expõe duas visões de mundo antagônicas. Uma é a visão de mundo arejada, cosmopolita, laica, assentada no bem-estar social, nas liberdades individuais e na valorização do conhecimento como motores da história. A outra é a antítese de tudo isso: obscurantismo, fanatismo religioso, brutalidade (traduzida na fixação por cabeças degoladas) e intolerância a mulheres, gays e um grupo enorme e difuso que atende pelo nome de “infiéis”. Não por acaso, refugiados dos conflitos nos países muçulmanos buscam uma vida melhor na Europa, e não no Paquistão, na Arábia Saudita ou na Indonésia.

O mundo evoluiu muito depois da Segunda Guerra Mundial, protagonizada justamente pela Europa. E a França representa como poucas nações essa evolução. Talvez por isso tenha se tornado objeto de desejo dos canalhas. É claro que a Europa paga o preço por seu passado colonial e por deploráveis intervenções em nações soberanas no decorrer das últimas décadas. Isso deve ser levado em conta ao tentarmos compreender – nunca justificar – o que poderia ser uma reação legítima a séculos de opressão. Mas não me refiro aqui a alianças entre nações ou ações militares coordenadas pela Otan, e sim a diferentes formas de viver em sociedade.

A barbárie praticada por fundamentalistas islâmicos é concebida a partir de um ambiente de mediocridade, aspirações descabidas e eterna vitimização onde nada floresce. Não há intelectuais, muito menos cientistas ou empreendedores sociais. Quem se rebela é morto ou, como a jovem Malala, escapa e brilha fora desse ambiente contaminado. Nice vai continuar sendo Nice depois desse atentado, linda e desejada. Já os radicais continuarão sendo uma nódoa no tecido da civilização. Não me refiro, obviamente, à religião islâmica, mas a dogmatismos perigosos que se amparam numa leitura distorcida do Alcorão.

Há um agravante: atentados como o de Nice – e também o de Paris, ocorrido semanas atrás, quando um professor foi assassinado – servem de combustível para o populismo de extrema-direita europeu, do Brexit à ascensão de Marine Le Pen. Terrorismo (do Boko Haram aos supremacistas brancos) e fascismo (de Hitler a Trump) se alimentam da rejeição ao diferente, do ser “inferior” que é o alvo a ser abatido. Os refugiados asiáticos, africanos e latino-americanos que buscam uma vida melhor podem representar justamente o contrário para os países que os abrigam: uma cultura mais rica e diversificada, mais mão de obra e mais gente jovem, em contraponto a populações que envelhecem rapidamente.

O atentado de quinta matou três pessoas, sendo uma delas uma mulher brasileira. Um número relativamente baixo, por se tratar de um ataque a faca. Mas a mesma Nice sofreu um terrível massacre em 2016, que deixou 86 mortos. Outras cidades da França, Inglaterra, Alemanha, Espanha e Bélgica passaram por ataques semelhantes. É a sina da humanidade se desvelando em todo seu tenebroso esplendor: pequenas tragédias individuais se encontrando com a grande marcha da história, como sempre feita de sangue, suor e lágrimas, para lembrar a célebre frase de Churchill. Nós, sobreviventes vulneráveis e desnorteados, apenas lamentamos o azar alheio e louvamos a nossa sorte.