Vacinados e aliviados, noventões de Salvador agora planejam o centenário

CORREIO ouviu idosos sobre planos para o futuro e a era pós-covid-19

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  • Carolina Cerqueira

Publicado em 7 de fevereiro de 2021 às 21:30

- Atualizado há um ano

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Melhor idade, terceira idade, velhice. São muitos os nomes usados para classificar em que etapa da vida estão aquelas pessoas que carregam consigo anos e anos de experiências, histórias, tristezas e alegrias. Para alguns, já seria hora de se acomodar, sossegar o facho. Mas, para Nelita Pereira, de 93 anos, Delza Soares, 92, Jonas Araújo, 91, e Ciçone Fiúza, de 90, ainda é tempo de dançar, rir, dirigir, tomar umas cervejinhas e ir à praia, por exemplo. A meta é chegar aos 100 e, para isso, a vacina contra a covid-19 está sendo muito bem-vinda.

Em Salvador, a vacinação para os idosos acima dos 90 anos começou no último dia 2 e terminou neste domingo (7). A expectativa para o início dessa etapa era grande, já que a maior taxa de mortalidade por covid-19 vem ocorrendo entre a faixa acima dos 60 anos e, quanto mais a idade avança, mais as porcentagens sobem. 

Por isso, para Nelita, a vacina que recebeu na quinta-feira foi como um presente. A imunidade será a confirmação de que a vida vai continuar e vai poder ser aproveitada como merece. O convite do aniversário de 100 anos já foi distribuído desde a festa dos 90 e ela já está pensando no que vai aprontar na próxima.“A primeira vez que eu fiz uma festa de aniversário foi nos 90 anos. Você sabe que no dia da festa eu desci na escorregadeira do parquinho de criança? Eu chamei o fotógrafo para ele tirar foto, aí no final eu fiz assim: ‘agora você me levanta daqui!’”, diz ela, rindo. “Eu sempre digo que a gente não deve sofrer por antecipação nem alimentar tristeza. Quando estava perto do aniversário, uma irmã minha faleceu. A outra irmã queria que eu terminasse com a festa, mas meu neto vinha do Canadá, meu sobrinho vinha de Brasília. A gente sofre, mas a vida continua, nada vai fazer a pessoa voltar. Se voltasse, eu estava chorando até hoje”, explica. 

Para ela, é preciso aproveitar cada segundo: “Enquanto o tempo não me mata, eu vou matando o tempo”. Nelita já precisou ser internada duas vezes, mas não se abalou. “Estou bem. Bem, não, estou ótima!”, comemora ela. “Da segunda vez, o médico disse que aquele lá de cima não me quer lá. Acho que ele tem medo de, do jeito que eu sou, tomar o lugar dele”, brinca.  Nelita no aniversário de 90 anos (Foto: Arquivo pessoal) Ela se orgulha de não sentir dores, mesmo morando no quarto andar de um prédio de escada, de fazer artesanatos e de ser conhecedora das novas tecnologias, sabendo usar até o Facebook. Participa, há 20 anos, da Faculdade Livre da Maturidade, que tem atividades voltadas para idosos. Lá, faz aulas de oficina de memória, artesanato, yoga, dança, dentre outras. “Já sou veterana, todo ano eu sou reprovada, não consigo me formar”, diz ela, sempre muito brincalhona.

“Quando eu entrei, comprei um caderno, mas nunca escrevi nada. Não gosto de escrever, gosto mesmo é de falar”, completa. 

E, assim, ela vai tocando a vida, com muito bom humor e animação. Talvez esse seja o grande segredo. Agora, tudo que ela quer é poder continuar indo à praia, fazer seus artesanatos, voltar a frequentar a Faculdade e curtir os dois filhos, dois netos e três bisnetos. Ah! E, claro, chegar à casa dos 100! 

Os desafios da pandemia Jonas também tem sede de viver e ainda quer muitos anos pela frente para reunir a família e também os amigos para beber, porque ninguém é de ferro. Quando fala do alívio que vai sentir ao estar imunizado, os planos para quando esse momento chegar estão na ponta da língua.“Eu vou andar por aí, abraçar todo mundo, vou ver minha filha em Mata de São João, vou para Serrinha, minha terra natal, ver meus parentes que moram lá, recuperar o tempo que passou. E tomar uma biritazinha, né?”, diz ele, rindo. Essas foram as duas alegrias que a pandemia tirou de Jonas. Ele gostava de ir até a banca de jornal perto de casa e encontrar os amigos para jogar dominó, bater papo, rir e apertar a mão de quem passava. Todo domingo, era dia do tradicional almoço de família. Grande anfitrião, ele sempre descia para a porta do prédio e ficava esperando os convidados chegarem. Só subia quando todo mundo já estivesse lá. Ver a casa cheia o enchia de alegria. O apartamento é pequeno, mas sempre cabia mais um. 

Agora, ele conta os dias para ter isso de volta e sabe que, mesmo já recebendo a primeira dose, é preciso esperar. “Por enquanto, tem que continuar do mesmo jeito, porque o efeito não é instantâneo, é demorado. Eu ouvi dizer que só depois da segunda dose que vai ter o efeito total, né?”, diz ele.  Jonas no aniversário de 91 anos (Foto: Arquivo pessoal) Para passar o tempo em casa durante a pandemia, Jonas, que sempre gostou de escrever, se ocupa fazendo anotações. Dessa vez, sobre a geografia do Brasil. Quem sabe não vira o segundo livro? Sim, ele já escreveu um livro. ‘O Livro de Jonas: História da Minha História’ fala sobre a vida desse sertanejo de Serrinha que, ainda adolescente, se mudou para Pojuca e se aventurou no comércio, na política e então se mudou para Salvador. 

Para quem nasceu na roça, só passou seis meses dentro de uma sala de aula e aprendeu com a mãe e também por conta própria a ler, escrever e contar, ver os cinco filhos formados é motivo de muito orgulho. “Eu me sinto muito honrado de ter a família que eu tenho. Tomara que eu alcance ainda os bisnetos. Ainda estou fortezinho, com fé em Deus ainda vou viver para ver eles”. 

Delza também não está achando a pandemia nada fácil. Com seis filhos, 10 netos e 10 bisnetos, a casa vivia sempre cheia. “Eu estou há 11 meses presa aqui dentro de casa. Só a minha filha que mora no mesmo prédio que eu que entra aqui. O resto eu recebo aqui da janela, que tem uma grade, o pessoal fica do lado de fora e eu vejo eles, mato um pouquinho a saudade”.

Ela conta que os filhos queriam levar ela para morar com eles, mas não tiveram sucesso na missão. “Eu gosto de morar sozinha, gosto de ficar na minha casa, no meu espaço. Se alguém quiser ficar aqui, pode ficar, mas eu não vou para lugar nenhum”, diz ela. 

Enquanto espera a imunidade chegar e a pandemia passar, Delza costura em casa e faz planos para o futuro. “Agora eu tenho que recuperar o tempo perdido, viu? Tenho parentes morando em vários lugares da Bahia, tenho que ir ver eles”, conta. Para ela, a idade avançada não é empecilho de nada, pelo contrário, é preciso aproveitar cada ano que ganha de presente, porque não é todo mundo que tem esse privilégio. “Minha mãe morreu com 42 anos, uma irmã minha morreu com 37. Eram quatro filhos, só ficou eu. Por isso eu achei que não ia passar dos 50. E agora estou aqui, saudável”, comemora ela.  

Espírito de juventude

Ciçone, quando fala da idade que tem, a resposta vem com um complemento especial: “90 anos e pretendendo chegar aos 100! Minha tia morreu com 108 anos e tenho uma prima que está com 103. Aí eu digo ‘por que eu não vou chegar aos 100?’, a minha meta agora é essa”. Ela vai se vacinar neste domingo e não vê a hora de ver todo mundo imunizado. “Espero que seja tudo bem, que a gente possa sair logo dessa confusão de coronavírus”, deseja ela. 

Envolvida a vida toda em diversas atividades, agora nada mudou. Ela dirige, é síndica do prédio onde mora e vice-presidente da Ordem Terceira de São Francisco. “Estou lá desde 1967. A Ordem era dirigida por homens, só eles mandavam, na diretoria não entrava mulher. Eu fazia parte da mesa de honra, formada pelas esposas dos diretores. Aí um dia eu tive a grande coragem de me candidatar à presidente da Ordem. Fui com cara e coragem e consegui”, conta ela, contente e orgulhosa. 

É disposição para colocar muito jovem por aí no chinelo. A memória? De dar inveja! “Minha cabeça não para. Tudo que a família quer saber, me procura. Estou com 90 e a memória boa porque eu sempre trabalhei muito”, diz. Para ela, o segredo é sempre fazer o que gosta e o que dá vontade, aproveitar. “Eu sempre digo que só vou me considerar velha no dia em que eu não puder chupar cana. Outro dia eu fui para Itacimirim, aí estavam vendendo cana no pedágio e eu comprei. Cheguei, comi e disse ‘ainda não sou velha, posso ser idosa, mas velha não’”, finaliza. 

Conselho dos mais velhos Aos 92 anos, Mãe Carmen do Gantois - filha caçula de Mãe Menininha do Gantois - foi vacinada por profissionais da Secretaria Municipal da Saúde, na manhã desta sexta-feira (5) em sua residência. De acordo com a assessoria do terreiro Ilé Ìyá Omi Àse Ìyámase, conhecido popularmente como Gantois, a vacinação de uma liderança religiosa como Mãe Carmen representa mais um passo no processo de luta contra a pandemia, principalmente pela representatividade do povo negro e de candomblé.

Emocionada após receber a dose, Mãe Carmen fez um apelo para que os mais jovens se cuidem e obedeçam às medidas sanitárias estabelecidas por autoridades de saúde até que também possam ser vacinados. “Não senti nada, não dói, foi bastante tranquila. Essa vacina é para preservação da minha saúde, da minha vida, mas especialmente para a vida dos mais jovens, para servir de exemplo. Que os mais jovens se preservem, se cuidem, espero que todos em breve também possam receber a vacina, estou feliz”, comemorou.

Envelhecer com qualidade

A população brasileira vem apresentando uma tendência de envelhecimento e superou a marca dos 30,2 milhões em 2017, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua – Características dos Moradores e Domicílios, divulgada em 2020 pelo IBGE. As mulheres são maioria expressiva, com 16,9 milhões (56% dos idosos), enquanto os homens são 13,3 milhões (44%).

Nos últimos anos, os grupos de pessoas perto dos 100 vêm crescendo. Segundo projeções do IBGE para 2020, o Brasil tem mais de 815 mil habitantes com 90 anos ou mais. O censo de 2010 mostra que, na Bahia, eram 46.600 idosos nessa faixa etária. Em Salvador, esse número vai para 5.853.

Mas nada como chegar na casa dos 90 com disposição, saúde e cabeça boa. E isso tem sido cada vez mais comum de se ver. Para o geriatra Leonardo Oliva, presidente da Sociedade Brasileira de Geriatria- Regional Bahia, vários fatores justificam a longevidade. “De maneira geral, cerca de 60% do que define a forma como a gente vai envelhecer são as escolhas que a gente faz ao longo da vida, como beber pouco, não fumar, praticar atividade física e se alimentar bem. 20% estão relacionado ao ambiente em que você está envolvido, se tem estresse, poluição. E os outros 20% é genética”, explica Oliva. Mas, para ele, “mais importante do que viver muito é chegar bem em uma idade avançada”. Por isso, ele ressalta a importância dos idosos continuarem se esforçando para manter o corpo e a mente saudáveis e, aí, a vacina tem um grande papel.   

Segundo ele, os idosos, ao serem classificados como grupo de risco, passaram a acreditar que, uma vez adoecendo, seria o fim da vida. “Emocionalmente falando, essa população sofreu muito, pelo medo de adoecer, medo de morrer. Também por se tornar grupo de risco e por perder a possibilidade de ter uma atividade de lazer, de distração. Então, a chegada dessa vacina, que tem se mostrado muito segura, mesmo para essa população mais idosa, é um grande alívio, uma luz no fim do túnel. É como muitos estão falando: é o começo do fim”, analisa.  

*Com orientação da chefe de reportagem Perla Ribeiro.